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"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias. E deu certo.

Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não?

Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serviço do regime militar. Desde então, sua carreira entrou num ostracismo eterno, apesar de ninguém ter certeza de sua culpa.

Algumas leituras sobre história da música brasileira me faziam acreditar que o caso Simonal sempre foi cercado por uma espécie de Fla-Flu, sem muita discussão ou pontos de vista imparciais ou bem fundamentados. Quem era mais favorável ao regime militar, procurava absolvê-lo; quem era "de canhota" - pra usar uma expressão do documentado - apontava o cantor como culpado. E ponto!

O filme é recheado de bons depoimentos de gente que viveu aquela época, e conta de uma forma bem redonda a encrenca em que Simonal se meteu. Subitamente mal de grana, o cantor viu em seu contador um possível larápio. Quando decidiu tomar satisfação sobre eventuais desfalques financeiros (nunca provados), fez uso de alguns contatos com gente da pesada (leia-se policiais do Dops) para conseguir levar adiante as "investigações". A iniciativa foge de seu controle e, no final das contas, o contador chegou a ser levado a um dos famosos porões da ditadura, onde foi torturado por mais de 24 horas. Quando tal história caiu na imprensa (apesar da censura à época), foi um prato cheio...

Sabendo disso, é possível dizer que o filme tem dois pontos altos, bem relevantes àqueles que não viverem os anos 60 e 70: 1- saber realmente qual a dimensão da fama de Simonal, cantor negro, metido a folgadão, nascido pobre e dono de um carisma e talento excepcionais; 2- ouvir o contador que foi torturado "a mando" de Simonal.

A partir daí, a impressão que se tem é a de que Simonal foi injustiçado no tamanho da punição a que foi submetido, mas no fundo é complicadíssimo para qualquer um que não viveu aqueles anos lamentáveis opinar sobre as ações de Fulano ou Sicrano. Se por um lado Simonal pisou na bola ao pensar em dar um corretivo em seu contador, por outro é difícil ignorar certos aspectos que pouco mudaram na sociedade brasileira durante as últimas décadas: ser negro, rico, famoso e bom moço, tal qual Pelé, é algo "suportável" para aqueles que se veem como brancos. Agora vá ser negro, rico e famoso, mas também falastrão, desbocado, debochado e de nariz empinado... E se o tal sujeito ainda cantar versos como o de "Mamãe passou açúcar em mim", danou-se.

"Eu sei que tenho
Muitas garotas
Todas gamadinhas por mim
E todo dia
É uma agonia
Não posso mais andar na rua
É o fim...

Eu era neném
Não tinha talco
Mamãe passou açúcar em mim..."



Fica a dica do filme, já lançado em DVD. E fica também um bocado da pilantragem de Simonal: "Sá Marina", "Tributo a Martin Luther King" e "Vesti azul":





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