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O dilema dos EUA: resgatar o passado ou construir um novo futuro?


RESENHA DE "ESTAS VERDADES", DE JILL LEPORE

Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 2008, utilizando-se de um slogan que ganhou fama mundial: “Change”. Nem durante a campanha eleitoral e tampouco no decorrer de seus dois mandatos foi possível entender com clareza qual seria essa mudança. Em 2016, Donald Trump conseguiu ser muito mais explícito ao prometer que tornaria a América grandiosa novamente. O empresário e apresentador de TV optou pelo resgate de valores do passado estadunidense para atingir em cheio ― e com sucesso ― o cidadão insatisfeito com o presente incerto deste início de século 21. Após oito anos de ações abstratas do governo Obama, seu sucessor não se furtou em propor uma série de políticas xenófobas, segregacionistas e protecionistas para chegar à Casa Branca.  

Desde o primeiro dia de seu mandato, pairaram sobre Trump nuvens de ameaças à democracia dos Estados Unidos. Seu desastroso adeus ― marcado pela tentativa de autogolpe em 6 de janeiro de 2021 e pelas centenas de milhares de mortos durante a pandemia da Covid-19 ― confirmou esse temor e evidenciou que os valores do passado resgatados pela extrema-direita do país devem permanecer somente nos livros de História.

“Estas verdades”, de Jill Lepore, tenta jogar alguma luz a esse debate a respeito da influência do passado estadunidense sobre os rumos da política contemporânea do país. Historiadora e professora da Universidade de Harvard, ela se propõe a contar a história da formação dos Estados Unidos tendo a política como enfoque, abrindo mão, por exemplo, de se aprofundar em documentos militares e diplomáticos. Seu objetivo é muito claro desde o princípio: fazer de sua obra uma explicação sobre a natureza do passado. 

De Cristóvão Colombo à eleição de Trump, Lepore disseca atrocidades como a escravidão e o extermínio dos povos indígenas originários, mas também dedica grande espaço em seu texto para o que ela chama de “decência e esperança, prosperidade e ambição”, além da “criatividade e beleza” contidas na história dos Estados Unidos. As “verdades” do título, segundo a autora, são a base de sustentação do “experimento americano” elaborado por Thomas Jefferson, constituído por três ideias políticas: igualdade, direitos naturais e soberania do povo. Em um dos rascunhos da Declaração de Independência, Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente do país, escreveu: “Consideramos estas verdades sagradas e inegáveis”. 

Em certo trecho do livro, Lepore defende que a fundação dos EUA está diretamente ligada à forma como a História passou a ser estudada em meados do século 18. A partir daquele momento, o trabalho do historiador passou a ser compreendido como uma forma de investigação ― e, para tanto, passaria a ser imprescindível reunir evidências passíveis de contestação. Segundo a autora, essa inovação surgia de um esforço para deixar a História e a fé em lados opostos da sociedade. Jefferson e os outros “pais fundadores” dos Estados Unidos não exigiam o abandono de nenhum tipo de crença e das verdades oferecidas pela religião, mas propunham um experimento no qual o passado deveria sempre ser submetido ao ceticismo. Eis aí um resgate adequado para os duros anos que Joe Biden terá pela frente.

Estas Verdades - Jill Lepore
Editora: Intrínseca
Formato: 16cm x 23cm
1ª edição: 2020
Preço: R$ 59,90
Páginas: 1072

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