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Sobre djavanês e regravações infelizes

Ontem ao ver um trecho do sempre bacana "Sr Brasil", com Rolando Boldrin, lembrei do velho texto "O homem que sabia djavanês", cujo autor nunca descobri. Pra quem não conhece, aí vai. Depois eu concluo o post.

O homem que sabia djavanês

Eu tinha chegado fazia pouco ao Rio de Janeiro e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro. Até que um dia, lendo "O Globo", deparei com este anúncio: "Precisa-se de um professor de djavanês".
A audição das músicas de DJ Avan sempre provocou em mim puro mal- estar físico. Mas, enfim, precisava de grana e decidi fazer o possível para vencê-lo.
Naquela semana, fui a todos os barezinhos com música ao vivo da idade. Perdi a conta de quantas vezes escutei "e o meu jardim da vida ressecou, morreu" ou "amar é um deserto e seus temores". Foram sete dias de tortura; contudo, saí deles com o djavanês na ponta da língua. Em vez de mandar meu currículo, achei que conviria visitar o endereço indicado no anúncio.
Era um tríplex de cobertura, decorado com muito dinheiro e mau gosto ainda maior, num dos bairros mais caros do Rio. Apresentei-me comoprofessor de djavanês e, após ser submetido a inquérito pelos empregados, fui levado à presença do patrão, o doutor Albernaz. Ele me recebeu com um sorriso visivelmente irônico.
"Então o senhor é professor de djavanês, hein?" "Sim, sou. Formado em djavanês e com mestrado em beregüê. Tive dez com louvor na minha tese sobre a influência de Carlinhos Brown na obra de James Joyce." A tese, obviamente, não existia, mas o doutor Albernaz pareceu acreditar na conversa. "Então, só o senhor pode me ajudar. Ouça isto, por favor" - e pôs nas minhas mãos uma coletânea do DJ Avan em CD. Ao notar minha cara de ponto de interrogação, ele contou sua história.
"Pouco antes de morrer, meu pai me entregou esse CD e disse: 'Filho, tenho certeza de que DJ Avan canta coisas muito profundas, mas ouvi suas músicas durante anos e nunca consegui entender porra nenhuma. Só podem ser segredos iniciáticos transmitidos da maneira mais hermética possível. Descubra o significado e você obterá a chave da felicidade'."
O doutor Albernaz abriu o encarte do CD e me mostrou uma das letras: "'Obi, obi, obá. Que nem zen, czar. Shalom Jerusalém, z'oiseau'. O que é isso?". Eu estava tenso com a pergunta do doutor Albernaz.
Tantas músicas do DJ Avan e o velho tinha de querer saber o que significava a letra de "Obi"? Desgraçado. Se ainda fosse aquela do "o amor que é azulzinho", mas era tarde. Ele tinha os olhos fixos em mim: queria respostas. Todo o sucesso da minha empreitada dependia de uma explicação convincente e imediata. De repente, uma idéia. Começo: "Veja bem. 'Obi' é certamente uma referência a Obi-Wan Kenobi, o sábio de 'Guerra nas Estrelas' interpretado por sir Alec Guinness. 'Obá', por sua vez, remete a 'Djobi Djobá', sucesso dos Gipsy Kings. DJ Avan buscou contrastar o lado luminoso e britânico da força com os mistérios nômades da alma cigana. A mesma tensão dialética pode ser verificada no verso subseqüente, 'que nem zen, czar': a contemplação espiritual dos monges budistas e o poder absoluto dos czares. Perceba como tese e antítese se resolvem lindamente na síntese do verso seguinte: 'shalom Jerusalém' é a paz do espírito na divina cidade. É ela que faz a alma se elevar aos céus, como um pássaro ('z'oiseau')". Os olhos do doutor Albernaz se arregalaram enquanto eu falava.
Dois segundos depois de eu terminar, ele gritou: "Que maravilha! Sabia que havia algo de muito profundo nessa letra! O senhor é um gênio da hermenêutica, um mestre do djavanês!".
Passei a tarde inventando explicações para todas as outras letras do CD - Açaí guardiã..., Kremlin-Berlim-pra-não-dizer-Tel-Aviv..., índio cara-pálida cara de índio... Citei Joyce, Pound, Oswald, Glauber, Zé Celso, Hélio Oiticica e Odair Cabeça de Poeta: name-dropping é comigo mesmo.
Daí por diante, minha ascensão social estava garantida. Eu era o único intelectual do país capaz de traduzir a transcendência da inguagem de DJ Avan. Tinha prestígio acadêmico e subsídio do Ministério da Cultura; gostosíssimas estudantes de lingüística rasgavam as roupas e se atiravam aos meus pés. Mas troquei tudo por um violão, sandálias de couro cru e um penteado novo. Mudei até meu nome graças ao djavanês.
Hoje me chamo Jorge Vercilo e sei que "nada vai me fazer desistir do amor"...

---x---x---

Pois bem. Jorge Vercilo estava no programa da TV Cultura - surpresa número 1. Aí o rapaz começa a cantar "Beatriz", do Chico e do Edu Lobo - surpresa número 2. Uma eventual terceira surpresa seria curtir sua versão, mas não foi o caso.

Mais do que isso: Vercilo conseguiu ser pior do que Ana Carolina cantando a mesma música. Passam-se os anos e os artistas novatos insistem em fazer algo que nunca dará certo: regravar canções que dificilmente poderão ser mais bem interpretadas do que algumas versões definitivas. No caso de "Beatriz", vai demorar 249 anos pra alguém chegar perto de Milton Nascimento. Nem mesmo Monica Salmaso - talvez a cantora mais talentosa da nova geração - chegou perto, embora não tenha repetido o papelão de alguns de seus colegas.

Clicando aqui (o azar é seu) você pode ouvir a versão de Vercilo para "Beatriz". Para ouvir Ana Carolina ("será que ela é moça?"), clique aqui, mas não sem abaixar o volume, já que ela grita pra cacete. Para ouvir dona Salmaso, clique aqui. E pra ouvir seu Milton só veja o vídeo abaixo:

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