Pular para o conteúdo principal

Mônica Salmaso, a mentirosa

Primeira mentira: "Me desculpem por estar gripadíssima hoje. Talvez minha voz não esteja tão boa e não dure até o final do show". Segunda lorota: "Eu sei que alguns vão embora insatisfeitos, pois o show tem só 14 músicas e todo mundo tem ao menos umas 170 canções preferidas do Chico... lamento".

Mônica Salmaso mentiu de forma descarada durante o show desta quinta-feira (28), no Teatro Fecap (uma grata surpresa, pela boa localização e pelo aconchego da casa). Sua voz esteve magnífica, à altura do repertório escolhido para a temporada de lançamento do disco "Noites de gala, samba na rua", gravado com a incrível banda Pau Brasil, apenas com músicas de Chico Buarque. E corto meus dedos se alguém da platéia foi embora insatisfeito, tamanho o brilhantismo da interpretação das 14 canções (OK, poderiam ser 28, 56 ou 112) carinhosamente selecionadas no vasto repertório do feioso.

Impressiona uma certa desenvoltura travestida de timidez da cantora, especialmente nos comentários que ela faz nos intervalos entre algumas músicas. Mônica conta causos sobre Chico ("de fontes quentíssimas"), explica que a letra de "Você, você", parceria com Guinga (amém!), foi composta pensando em seu neto – mas sob o ponto de vista da mãe – e faz comentários engraçadíssimos, com cara de mocinha que acabou de fazer alguma travessura.

É impossível também não comparar a interpretação que Mônica dá a algumas músicas de Chico. "Ciranda da Bailarina" é cantada com charme inédito, que faz sorrir e ter vontade de voltar a ser criança. "Beatriz" fica 428% mais bonita do que na voz de Ana Carolina, mas a gravação de Milton Nascimento ainda é insuperável. A já citada "Você, você" fica pau a pau com a versão de Leila Pinheiro. "Partido alto", tantas vezes gravada por homens e mulheres, se enriquece com o belo arranjo da Pau Brasil. Já "Quem te viu, quem te vê", de tão bem cantada, chega a um nível tão bom quanto o de Maria Bethânia, embora comparações com a irmã de Caetano sejam descabidas, mesmo para alguém tão qualificada como Salmaso.

Com o novo disco – o sétimo de sua carreira – e tão belo show, a "mentirosa" não apenas se firma como alguém da linha de frente entre as cantoras brasileiras (sem precisar gritar ou cantar feito homem), mas segue em um caminho que muitas de suas colegas não conseguiram se manter. Assim como Bethânia (e ao contrário de Gal Costa, por exemplo), Mônica Salmaso exibe novamente sua voz (ouça os discos anteriores) a partir de músicas de qualidade inquestionável, sem cair em modismos ou projetos descabidos.

Comentários

Ygor Moretti disse…
É lamentavel mesmo o nominimo, mas amizade a parte o tal do jareparou tem resultado em bons momentos na net sim opa como não? rss abração velho e te mais.
Mônica passou aqui em BSB como a dona definitiva das interpretações que fez, no entando concordo com o que vc falu sobre Beatriz.

Postagens mais visitadas deste blog

Bismarck, unificação e as consequências da industrialização alemã

É impossível afirmar que um evento com a magnitude da Primeira Guerra Mundial tenha ocorrido por conta de um fenômeno isolado – são vários os elementos envolvidos. No entanto, para muitos historiadores e analistas, o papel geopolítico desempenhado pela Alemanha no final do século 19 foi um fator preponderante para o início do conflito. Este trabalho pretende analisar, pelo viés do desenvolvimento econômico da Alemanha, de que maneira um país unificado somente em 1871 pôde se transformar, em pouco mais de quatro décadas, em uma nação de primeira grandeza – a ponto de ser um dos protagonistas da Primeira Guerra. Que elementos – externos e internos – contribuíram para essa ascensão? Até que ponto é correto responsabilizar os alemães pelo estopim do conflito que viria a tirar as vidas de 19 milhões de pessoas? De 1789 a 1848 – anos cercados por revoluções Uma geração inteira, tanto na França quanto nos estados germânicos, cresceu sob o impacto direto das consequências da Revolução Francesa...

O dilema dos EUA: resgatar o passado ou construir um novo futuro?

RESENHA DE "ESTAS VERDADES", DE JILL LEPORE Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 2008, utilizando-se de um slogan que ganhou fama mundial: “Change”. Nem durante a campanha eleitoral e tampouco no decorrer de seus dois mandatos foi possível entender com clareza qual seria essa mudança. Em 2016, Donald Trump conseguiu ser muito mais explícito ao prometer que tornaria a América grandiosa novamente. O empresário e apresentador de TV optou pelo resgate de valores do passado estadunidense para atingir em cheio ― e com sucesso ― o cidadão insatisfeito com o presente incerto deste início de século 21. Após oito anos de ações abstratas do governo Obama, seu sucessor não se furtou em propor uma série de políticas xenófobas, segregacionistas e protecionistas para chegar à Casa Branca.   Desde o primeiro dia de seu mandato, pairaram sobre Trump nuvens de ameaças à democracia dos Estados Unidos. Seu desastroso adeus ― marcado pela tentativa de autogolpe em 6 de janeir...

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura...