Pular para o conteúdo principal

Agora vai?

Enquanto o blog não volta decentemente à ativa, segue outro texto bacana...

Que o grande Chico me perdoe...

Pasquale Cipro Neto

Estive na penúltima edição do "Altas Horas", comandado por Serginho Groissmann. Entre as tantas boas perguntas vindas da atenta platéia, uma me fez cometer um lamentável deslize. Explico: uma garota me pediu comentários sobre letristas da nossa música popular. De imediato, avisei que era grande a possibilidade de eu cometer injustiças; depois, comentei o belo trabalho de vários dos nossos poetas musicais. E não é que sofri um apagão? Simplesmente me esqueci de Chico Buarque...
Lamentável!

O mundo viu o programa, e, passados mais de dez dias, a cobrança não termina ("E o Chico?"). Ainda bem que tenho o passado -colunas e mais colunas, programas e mais programas na Rádio e na TV Cultura- como prova de que sempre exaltei o brilhantismo poético-lingüístico de Chico Buarque. Mas não custa aproveitar a ocasião para aumentar o exemplário sobre o autor de letras do quilate de "Até Pensei", "Paratodos", "Construção", "Sábia", "Ode aos Ratos" e outras tantas que analisei neste espaço, no rádio ou na tevê.

Vamos lá, pois. Faz tempo que quero escrever sobre a letra de "Subúrbio", particularmente sobre estes versos, que iniciam a canção: "Lá não tem brisa / Não tem verde-azuis / Não tem frescura nem atrevimento / Lá não figura no mapa / No avesso da montanha, é labirinto / É contra-senha, é cara a tapa".

Releia o trecho, por favor, e note o que Chico faz com o vocábulo "lá". Normalmente usado como anafórico (termo que se refere a um elemento anterior - "Estive em Roma e lá encontrei..."), o advérbio "lá" inicia a letra de Chico retomando... Pois o golpe de mestre está aí. Teoricamente, o "lá" da letra retoma o título da canção, que, como já vimos, é "Subúrbio", mas o título é o título, não é uma palavra do texto, não aparece na letra antes de "lá" e, salvo engano, não aparece em nenhum momento da letra. Com isso, o que seria anafórico parece tornar-se catafórico (termo que se refere ao que será enunciado adiante), ou seja, quem ouve a música sem saber o título pode logo se perguntar "onde é lá?".

Mas o fato é que, no fundo, no fundo, o "lá" acentua a idéia de abandono, de isolamento do subúrbio e de sua gente, "aquela gente toda". O ápice do brilho dos versos iniciais da letra de Chico, no entanto, ainda não chegou; chega quando, "desadverbializado", o "lá" vira substantivo -e sujeito do quarto verso ("Lá não figura no mapa"). O nome de lá é "lá"! (E "Lá tem Jesus / E está de costas".) Registre-se que Chico "desanonimiza" o "lá" ao identificar os integrantes do subúrbio ("Fala, Penha / Fala, Irajá / Fala, Olaria" / "Fala, Acari").

A competência poético-lingüística de Chico lhe permitiu criar um raro caso de derivação imprópria, processo pelo qual se forma uma palavra não pelo acréscimo de prefixo ou sufixo (feliz/infeliz/felicidade) ou pela eliminação de sufixo e acréscimo de vogal temática (atacar/ataque), mas por meio da mudança da categoria gramatical sem a mudança da forma (em "Meu barracão no Morro do Salgueiro tinha o cantar alegre de um viveiro", da letra de "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa -a música é de Silvio Caldas-, o normalmente verbo "cantar" passa a substantivo, o que também é exemplo de derivação imprópria).

Vista sob o contexto da poesia, a criação morfossintático-semântica -única!- de Chico é simplesmente memorável. E viva Chico! É isso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bismarck, unificação e as consequências da industrialização alemã

É impossível afirmar que um evento com a magnitude da Primeira Guerra Mundial tenha ocorrido por conta de um fenômeno isolado – são vários os elementos envolvidos. No entanto, para muitos historiadores e analistas, o papel geopolítico desempenhado pela Alemanha no final do século 19 foi um fator preponderante para o início do conflito. Este trabalho pretende analisar, pelo viés do desenvolvimento econômico da Alemanha, de que maneira um país unificado somente em 1871 pôde se transformar, em pouco mais de quatro décadas, em uma nação de primeira grandeza – a ponto de ser um dos protagonistas da Primeira Guerra. Que elementos – externos e internos – contribuíram para essa ascensão? Até que ponto é correto responsabilizar os alemães pelo estopim do conflito que viria a tirar as vidas de 19 milhões de pessoas? De 1789 a 1848 – anos cercados por revoluções Uma geração inteira, tanto na França quanto nos estados germânicos, cresceu sob o impacto direto das consequências da Revolução Francesa...

I Was Born Ten Thousand Years Ago

E eis que de repente leio o seguinte parágrafo hoje no ônibus, na biografia de Paulo Coelho escrita por Fernando Morais: “Em dezembro de 1976 a Philips colocou nas ruas o quinto LP de Paulo com Raul, Há Dez Mil Anos Atrás [...]. A canção que dava nome ao álbum tinha duas peculiaridades: uma redundância no título e o fato de ser a tradução adaptada de I Was Born Ten Thousand Years Ago , conhecida canção tradicional americana de domínio público que tinha várias versões, a mais famosa delas gravada por Elvis Presley quatro anos antes”. Foram longos minutos até chegar ao trabalho e procurar no YouTube a versão original da música. E bateu uma certa sensação de ignorância por gostar de ambos (Elvis e Raul) e não saber que a longa letra é uma adaptação/tradução/homenagem. Sem mais delongas, seguem abaixo o vídeo e a letra original, com a ressalva de que há mais de uma versão para I Was Born Ten Thousand Years Ago : I WAS BORN ABOUT TEN THOUSAND YEARS AGO (Traditional - Adapted by Elvis Presl...

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura...