Reproduzo por aqui trechos de uma matéria bem legal publicada no caderno Fim de Semana, do “Valor Econômico”, a respeito de uma geração de artistas portugueses que, em meio à crise econômica no país, tem feito sucesso cantando músicas de protesto.
Abaixo, coloquei um vídeo com a música cuja letra abre o texto. Vale mais pelo registro do fenômeno social do que pela qualidade do conjunto. Segue abaixo:
Indignação à portuguesa
“Sou da geração sem remuneração e nem me incomoda esta condição. Porque isto está mal e vai continuar… já é uma sorte eu poder estagiar!” Entoadas em um inconfundível sotaque lusitano, essas frases abrem a canção “Parva Que Eu Sou”, do grupo português Deolinda. Desde a primeira vez que foram cantadas em público, conquistaram os portugueses, tomados pela indignação com a crise. Em breve, poderão ser ouvidas no Brasil.
Cantada pela vocalista Ana Bacalhau pela primeira vez na maior casa de shows do Porto em janeiro de 2011, época em que Portugal estava perto de ser resgatado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a canção trouxe à tona pela via musical o delicado momento econômico do país, gritou em público as frustrações de toda uma geração e virou o hino do momento mais difícil para os portugueses nas últimas décadas – especialmente para os jovens. Na ocasião, levou os presentes a uma salva de palmas sustentadas em pé por vários minutos seguidos, o que arrepiou os próprios membros do grupo.
“Parva Que Sou” pode ser considerada uma das faixas que mais representam uma nova onda das chamadas “músicas de intervenção” em Portugal, que se consagraram ao longo dos últimos anos do Estado Novo, na década de 1970, e fizeram parte da Revolução dos Cravos. Nos posteriores anos de democracia, o ritmo das canções de protesto se desaqueceu, mas a situação econômica atual faz que jovens artistas voltem a transferir para as letras de suas músicas a insatisfação com a falta de perspectivas.
O grupo Deolinda foi criado em 2006 com a ideia de resgatar a identidade portuguesa por meio de um “fado revisitado”, ao mesclar o estilo português famoso por seu tom melancólico com elementos modernos, alegres, coloridos e internacionais. Em seus shows e aparições públicas, a vocalista Ana Bacalhau (talvez ela mesma a própria Deolinda?) chega sempre vestida com xales e vestidos repletos de cores e adereços, esbanjando sorrisos e requebrando o quadril da forma que fadistas tradicionais do Bairro Alto ou da Alfama, no coração de Lisboa, jamais ousariam.
No refrão, Ana enche o peito e solta: “Que mundo tão parvo, onde para ser escravo é preciso estudar!” Ao ter sido aplaudida de pé por tanto tempo, ficava claro que muitos outros portugueses guardavam para si as mesmas palavras – e se sentiram aliviados pela voz da cantora. “Nós não esperávamos tudo aquilo, foi surpreendente”, disse ao Valor o próprio Pedro da Silva Martins, compositor da música, guitarrista do grupo e primo de Ana.
“Estava no Coliseu de Lisboa [maior casa de shows da cidade], quando eles apresentaram a música pela segunda vez. As pessoas começaram a levantar para aplaudir no meio da música, era surpreendente”, disse Mário Lopes, crítico de música do jornal “Público”, o maior do país.
“Hoje talvez o movimento [de músicas de intervenção] não aconteça de forma tão agrupada como era na década de 1970, mas isso é porque agora as informações chegam de todos os lados, e não existe uma corrente que seja identificada como única. Há espaço para todos” contou Miguel Cadete, crítico musical e diretor da revista musical portuguesa “Blitz”. “Os Deolinda não são exatamente um grupo de doutrinação política, mas com ‘Parva Que Eu Sou’ falam com uma juventude que não tem emprego ou, quando tem, é precário. A música se encaixou como um hino para toda uma geração que está insatisfeita”, acrescenta Cadete, que também é diretor-adjunto do semanário político “Expresso”.
Lopes explica que os momentos históricos são diferentes: na década de 70, nomes como Zeca Affonso, José Mário Branco e Adriano Correia Oliveira estavam comprometidos política e socialmente com uma ideia de revolução, de transformação, de liberdade. “O que vemos agora não me parece um movimento extremamente consciente. A intenção agora não é tão óbvia, mas há novamente o desejo de fazer da música uma forma de reinvenção”, comenta.
“Sempre tivemos a intenção de cantar o que está à nossa volta” disse Pedro Martins. “E sentimos que o estado social do país tinha se agravado muito. Passamos a sentir uma urgência em falar dos problemas, não podíamos ficar indiferentes. A própria Deolinda já nasceu com essa atenção à sociedade.”
Tal personalidade, desafiadora de um contexto perverso, conquistou Portugal à medida que a crise apertou durante todo o ano passado e no começo de 2012. “Parva Que Sou” virou tema de reportagens, de grupos de discussão pela internet, foi proclamada em passeatas de protestos pelo país e até assunto de sessões de debate no Parlamento. E abriu precedentes para que outros artistas também aumentassem o volume do coro de indignados.
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