Pular para o conteúdo principal

Abreviações

Dia desses, ao ver que o sobrinho de um amigo terminara seu processo de alfabetização, me peguei pensando em como cada criança tem suas dificuldades nessa fase fundamental. Cria-se um verdadeiro novo mundo diante dos olhos dos pequenos. Aquilo que até poucos meses atrás parecia como um código indecifrável passa a ter sentido. E, quando o sentido não surge, o bê-á-bá permite que apareçam inúmeras interrogações em seus pequenos (e tão borbulhantes!) cérebros.

Até hoje é frequente eu me flagrar com um sorriso ao me deparar com algumas palavras que me pareciam indecifráveis. Nem sempre os pais, algum adulto ou colegas mais velhos estão por perto para ajudar. Desde os quatro ou cinco anos até o início da adolescência eu apresentava certa incompreensão em relação às abreviaturas surgiam pela cidade, nos livros, nas propagandas de TV, gibis e em tudo que estivesse cheio de letras e estivesse ao alcance dos meus olhos.

A primeira delas sem dúvida foi a palavra “limitada”, sempre ao final do nome de empresas, na forma de “Ltda.”, quase sempre acompanhada do indefectível “Cia.”. Ao passear de carro ou de ônibus com o rosto grudado no vidro da janela, eu fazia questão de ler baixinho cada palavra que aparecesse pela frente. E em quase todos os passeios ela aparecia como “lítida”, seguida pelo ponto final que certamente encerrava a frase.

Em uma determinada linha de ônibus também aparecia outra abreviação matreira. Durante as intermináveis esperas pelo 6245-Vila Sônia, era comum eu ver passar, com muito mais frequência, o 6253-Parque Ipê (em geral, sem acento). Para economizar espaço, a palavra “parque” sempre vinha escrita de forma abreviada. Até pelo menos os dez anos de idade eu sempre quis saber que bairro era o tal “pique-ipe”, até que apareceu uma menina no colégio que era motivo de chacota por ter que acordar quase de madrugada, por morar nas redondezas do tal parque.

Os gibis da Disney também me confundiram por um bom tempo. Nas histórias do Mickey, especialmente aquelas que se passam em Patópolis e que envolvem tramas detetivescas, era muito comum a figura de um cachorrão chamado Coronel Cintra, parceiro fundamental para que o rato sabido e o simpático Pateta resolvessem seus casos. Nos balões de diálogo, sempre apertados, lá estava sempre o nome do “Cel. Cintra”. Como se tratava de uma figura mais velha, na minha cabeça de recém-alfabetizado tudo era muito claro: assim como meus pais chamavam alguns senhores mais velhos das redondezas pelos nomes de “Seu Pedro” e “Seu Armando”, o senhor do desenho era tão-somente mais um “Seu Cintra” que exigia uma forma mais respeitosa de ser abordado.

Há pouco tempo li que alguns cientistas vinham pensando em fazer uma experiência com um grupo de ao menos cem crianças: alfabetizá-las exclusivamente por meio de computadores, sem ensiná-las a escrever com lápis ou canetas. O mesmo se daria com as operações matemáticas fundamentais. Oficialmente, não surgiu nenhum grupo de estudos ou de pais dispostos a usar cérebros infantis como cobaias pedagógicas, mas não duvido de que em pouco tempo surjam estudos dessa natureza.

Como se daria a busca pelo significado de abreviações para essas crianças? Por meio do corretor do Word? Por uma boa e simples ida ao Google? Imaginar que recorreriam a um mini Aurélio virtual seria muita ingenuidade? Será que haveria tempo o bastante para que uma dúvida dessa ordem martelasse seus pequenos cocurutos? Ou deixariam as interrogações irem embora tão depressa quanto chegaram?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os compatriotas de Woody Allen

Estava em algum site por aí hoje: O diretor americano Woody Allen considera que a maioria de seus compatriotas são gordos e sexualmente complexados. "Tudo ali é expressão do medo e da repressão sexual: a loucura religiosa, o fanatismo pelas armas, a extrema-direita louca. Eles têm uma visão da sexualidade marcada por duvidosas leis morais", afirma Allen, em entrevista antecipada hoje pelo jornal "Die Zeit". O diretor de "Vicky Cristina Barcelona" considera que o sexo é utilizado nos Estados Unidos "como uma arma dramática, assim como a violência" e que as muitas cenas de sexo nos filmes produzidos em seu país são "simplesmente entediantes".

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura