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Mário Lago, 100 – compartilhando as “Figueiríadas”

Por uma dessas coincidências, caiu em minhas mãos uma biografia de Mário Lago ("Boemia e política"), cujo centenário de nascimento ocorre na próxima semana, em 26 de novembro. Morto em 2002, sua figura tornou-se mais conhecida para os mais jovens como ator de novelas, mas sua trajetória de vida é riquíssima e está longe de se resumir às aparições na TV Globo.

Mário Lago foi advogado, radialista, letrista de músicas como “Ai, que saudades da Amélia”, militante do PCB durante toda a vida. Quando criança, foi vizinho de muro de Villa-Lobos (!!), em cuja casa teve os primeiros contatos com a música clássica, ensinada pela esposa do grande compositor brasileiro.

O livro de Monica Velloso deixa um pouco a desejar no que diz respeito à fluência da narrativa – a vida de Mário Lago mereceria uma pesquisa mais ampla e um texto mais trabalhado. Mas deixemos de lado as críticas para dar destaque a um detalhe muito bacana da vida do biografado: a verve poética utilizada como contestação política.

Corria o ano de 1979 e já se sabia que João Batista Figueiredo seria o próximo ditador a dar plantão em Brasília. Em meio a um regime militar já enfraquecido e pelo estilo do sucessor de Ernesto Geisel, sua figura tornou-se o alvo preferencial entre os humoristas que contestavam aquele cenário bizarro.

Mário Lago se valeu de amplo espaço no “Pasquim” para publicar o poema “Figueiríadas”. Suas centenas de versos alertavam os caricaturistas, humoristas, compositores e sambistas para a chegada do general ao cargo máximo da República.

Segue abaixo a íntegra do poema, como homenagem aos 100 anos de Mário Lago (já com adiantadas desculpas por eventuais erros cometidos pela digitação apressada, por não ter encontrado em nenhum site tão rico retrato sobre um tragicômico personagem de nossa história):

Os autores das grandes gargalhadas,
Que espremem o bestunto em seu ofício
de distrair o povo com piadas
(usando às vezes tanto de artifício
pra não terem suas obras censuradas),
veem baldado todo o sacrifício,
pois, num terreno em que eram imbatíveis,
surge agora rival dos mais temíveis.

Cale Ziraldo a criatividade;
emudeça Jaguar sua ironia;
Henfil mate a Graúna sem saudade;
fique Max Nunes na cardiologia;
esqueça Anísio a versatilidade;
Jô emagreça de melancolia;
que são todos, de humor triste arremedo
diante do humorista Figueiredo.

Calixto se envergonhe no outro mundo;
Pederneiras morreu? Pois que remorra;
Jota Carlos, chargista vagabundo,
dê o braço a Luiz Peixoto nessa zorra;
Aporelly apodreça lá no fundo.
Quem ainda faz rir cuide e corra,
que eu canto em grande estilo e tom bem alto
o humorista escolhido no Planalto.

De Noel a Chico imploro a bossa;
de João Nogueira um pouco da calçada
que no sangue e na voz (coisa tão nossa!);
De Ivone Lara a voz sempre afinada;
de Morengueira a ginga... caso possa;
de Sargentelli, ao menos emprestada,
uma mulata de cair o queixo
quando liga o motor do remelexo.

Numes dos partideiros, acudi-me!
Ó Xangô da Mangueira, ó Joãozinho
da Pecadora, concordai que eu rime
um canto transbordante de carinho
louvando aquele que seria um crime
deixar-se obrando tanto e tão sozinho.
Ganhe meu verso o céu, bem longe vá
nesta nova edição do Febeapá

O homem provoca riso às cataratas,
grande no hipismo, em tudo vai a trote;
pra fazer rir assume caricatas
posturas de machão, firme o chicote;
confunde porcelana com sucata;
pra ele tudo é igual — samba ou foxtrote;
quer fazer frases mas se enrola e ataca:
diz que gaúcho é gigolô de vaca.

(Zeca Netto pulou da sepultura;
Bento Gonçalves explodiu a cova;
Flores da Cunha fez-se de touro miúra;
os Farroupilhas exigiram prova;
Getúlio quis pôr água na fervura,
disse Honório de Lemos: “uma ova!”
Mas o velho insistiu: “mudem de assunto,
que o AI-5 pega até defunto”.)

Mais enrolado do que uma bobina
ele dá a tudo uma postura enfática:
“Chico Buarque intelectual? Mofina
essa interpretação. Muito pragmática.
Faz bons sambas, vá lá, mas não domina,
tanto quanto eu domino, a matemática.
Nunca fiz versos, peças de teatro,
mas garanto que dois e dois são quatro”.

O argumento talvez seja correto
(em questões de semântica não entro).
Tem cabeça e cabeça não é objeto
só pra chapéu — tem miolo ou ar no centro.
Kissinger, que, em análise, é discreto,
depois de o escutar portas adentro
lhe conferiu belíssimo adjetivo:
“Yes... Figueiredo is... imaginativo”.

E que imaginação tem o louvado!
Sempre a sorrir da forma mais simpática
quer conversar, porém, se contrariado,
perde a estratégia, favas para a tática!
Vai de investida para todo lado
matando logo a pobre gramática,
pois, tendo às pampas físico e saúde
quando se enfeza não explode: explude.

A expulsão pôs em pânico o Dinarte;
Bonifácio engoliu dez isordis;
Francelino explicou por toda a parte:
“diz-se projéteis... diz-se projetis;”
Mas Eurípedes com mais tato e arte,
buscou no Aurélio os pontos para os ii.
“Cadê expulsão?” Caiu em treme-treme.
“Olho no Aurélio, é caso pra IPM.”

Simonsen sorve a gafe em grande uiscada;
para Ueki é nova forma de energia;
mas energia não planificada,
segundo Reis Veloso denuncia;
os das Armas recusam a mancada,
como a nega também a Assessoria;
Paulinelli acha a coisa clara e lata:
“Na agricultura expludo uma batata”.

Reúne-se em segredo o Ministério
Filólogos chamados à socapa...
Urge uma explicação, que o caso é sério,
pode esse expludo atrapalhar o mapa.
Eis surge Armando como um refrigério,
o decreto já pronto, feito à tapa:
“Ato Complementar Extraordinário:
inclua-se expludir no dicionário”.

Mas o caso é mais grave do que pensam
os mortais resignados e infelizes.
Penas só para o Aurélio não compensam.
Essa omissão tem pérfidas raízes,
elos ganhando de Moscou a bênção,
pois, da baderna, ali estão as matrizes.
É tio do Chico! Artigo acrescentado:
“Todo o samba do Chico está cortado!”

(Ô homem, coisa sórdida e rasteira,
nunca alegre no aplauso bem fadado!
Talvez elogiar lhe dê canseira,
perdoar o erro alheio lhe dê enfado.
Com seus botões o Quandt de Oliveira
comenta meio triste e despeitado:
“bobagens dessas tantas eu hei dito
e nem por isso fui o favorito”)

De humor negro é cultor, e dos mais loucos,
pois o humorista perde pra o machão.
Num papo com estudantes, um dos poucos
indagou se era certa a acusação
de ser corrupto. Ai Deus, que gritos roucos
lhe saíram do peito em convulsão:
“Homem que me disser isso na cara
antes do meio do caminho pára”.

Pára como? Algum raio misterioso
que imobilize alguém no todo ou parte?
Que endoide? Do SNI chefe estudioso
pode ter aprendido engenho e arte
com o Ciaiei. Mas diz o perigoso
deus das batalhas, que é Mavorte ou Marte
“Disso eu entendo e nunca falo a esmo.
Quando ele diz pára... é a bola mesmo!”

Piada sinistra! Mas do deus, por certo,
pois o machão até tem sua graça.
Se lhe interessa saber ser esperto,
sabe atirar sorrisos quando passa.
Entre operários, ponto o peito aberto,
chamou um deles pra beber cachaça.
“Muito me honra o convite que recebo
mas não bebo, excelência.” “Pois eu bebo.”

E goela abaixo foi-se a talagada
“Quem for homem no copo me acompanhe!”
E outro copo desceu de uma assentada.
Mas, pra que o convidado não se acanhe,
comenta em sonora gargalhada:
“Feliz você que bebe só champagne.
Depois não argumente com o refrão
que o salário não dá nem para o feijão”.

Piadista contumaz, mais que o Vão Gogo
o SNI defende com cuidado,
negociando... “informação é fogo...
nem tudo para nós era contado... ”
E, em reticências, vai abrindo o jogo:
“Por que ver no SNI sempre o culpado?
Devíamos saber tudo o que havia...
mas... porém... entretanto... todavia...”

Já me cansa a fala e calo o verso...
emperra a máquina, em pavor me agito...
Revolvo os quatro cantos do Universo
buscando tudo por ele já dito.
Devo curvar-me a um fado tão adverso?
Ele não disse mais do que o escrito?
Será, meu Deus, que, para meu desencanto,
tudo se ajusta em tão mirrado canto?

Se em mais de mil estrofes, o colega
Camões cantou a gente lusitana,
por que uma cota igual o céu me nega
se eu canto o de melhor na raça humana?
Se aos píncaros o vate luso chega,
por que meu estro ao dele não se irmana?
Por que ele grande mar – em vaga e risco,
e eu nem de orvalho? De chuvisco?

Numes, correi num voo em meu socorro,
inspirai-me pra prosseguir a história.
Contei tão pouco e, de vergonha, morro
tão magro o poema com que quis a glória!
À imprensa, inda uma vez, doido recorro...
Mas... bolas! Minha meta era ilusória,
pois só agora, impávido e pampeiro,
o “artista” adentrou o picadeiro.

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