Pular para o conteúdo principal

A Copa de 2010 e a segunda libertação dos sul-africanos

A escolha da África do Sul como sede para a Copa do Mundo de 2010 remete a uma rápida observação a um passado já distante — mais especificamente à década de 1970. Corria o período entre os mundiais do México, em 1970, e o da Alemanha, em 1974, época em que o então presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), o brasileiro João Havelange, articulava sua candidatura à presidência da Fifa.

Havelange seria eleito em 1974 e só deixaria o cargo em 1998, depois de organizar seis mundiais. O principal trunfo dessa vitória seria devidamente reconhecido ao longo de seu mandato: a valorização de países que até os anos 1970 eram relegados a meros coadjuvantes do futebol mundial, como aqueles reunidos em torno das federações da Oceania, da Ásia e, principalmente, da África.

A primeira das retribuições de Havelange a essas nações periféricas se deu na Copa de 1982, na Espanha, quando o número de seleções participantes foi aumentado de 16 para 24 — permitindo, assim, que africanos, asiáticos e eventualmente algum país da Oceania participasse da competição. Dezesseis anos depois, no Mundial da França, esse número chegaria aos atuais 32 competidores.

A Copa de 1978, realizada na Argentina, ilustra muito bem como era feita a divisão entre as 16 seleções participantes do torneio: dez europeus, quatro americanos, um africano e um asiático. Quatro anos depois, com 24 equipes, a Fifa cedeu 14 vagas para a Europa, seis para a América, dois para a África, uma para a Ásia e uma para a Oceania.

Rodízio

A retribuição política de Havelange, no entanto, não se limitaria ao acréscimo de seleções presentes nos mundiais — ela se daria também na possibilidade de organizá-los e sediá-los. Até 1998 (ano em que Havelange transfere a presidência para seu fiel secretário-geral, o suíço Joseph Blatter), 16 mundiais haviam sido disputados: sete no continente americano e nove na Europa.

Antes de deixar o cargo, Havelange já havia acertado com federações de todo o mundo que a organização das copas passaria por um rodízio de sedes entre diferentes continentes. O Mundial de 2002, co-organizado por Japão e Coreia do Sul, foi a primeira ação concreta de tal acordo. Em 2010 o planeta verá a continuidade desse processo.

Por que a África do Sul?

O desejo de Havelange e Blatter de ver uma copa do mundo ser organizada na África se dará, na realidade, com quatro anos de atraso. Pelos planos dos dirigentes, o Mundial de2006, realizado na Alemanha, já deveria ter feito parte do esquema de rodízio iniciado com a escolha de Coreia do Sul e Japão para o evento anterior.

Ao longo da última década, a Fifa tem definido a sede de cada copa do mundo com seis anos de antecedência. Assim, em 2000 esperava-se que algum país africano emergisse como o vencedor do processo de escolha, mas, na última hora, a Alemanha garantiu mais apoios nos bastidores e desbancou justamente a África do Sul.

A vitória de um país europeu repercutiu muito mal entre as federações dos países considerados periféricos. Como consequência, a Fifa determinou que os mundiais seguintes viriam a ser realizados por algum país africano, em 2010, e por um americano, em 2014. Caberia às nações de cada continente definir quais seriam seus candidatos.

Dessa forma, quatro anos depois, além da preterida África do Sul, também se apresentaram como candidatas ao Mundial de 2010 as confederações de Egito e Marrocos — dois países com histórico futebolístico superior à dos sul-africanos.

Apesar da pouca tradição, a África do Sul, que disputara apenas os mundiais de 1998 e 2002, venceria por 14 votos a 10 a eleição final no comitê-executivo da Fifa, contra o Marrocos. De antemão, já se sabia que somente uma sucessão de tragédias poderia tirar dos sul-africanos o direito de sediar a Copa de 2010. O mal entendido de quatro anos antes e a favorável condição econômica do país perante seus concorrentes eram elementos suficientes para evitar uma nova surpresa.

Passado vergonhoso

O modus operandi da política mundial e as grandes mazelas socioeconômicas explicam a pouca tradição do continente africano no que diz respeito à organização de grandes eventos esportivos. A África do Sul, de modo mais específico, ainda apresentava, até 1990, outro empecilho: o apartheid (“separação”, no idioma africânder).

O vergonhoso regime sul-africano, ao contrário do que pensam alguns, não era composto por meros costumes culturais ou opções de determinados grupos do país. O apartheid era uma política implementada por meio de uma legislação específica, resultado da vontade de uma elite branca, minoritária e racista.

Somente em 1990, com o fim do regime que, entre outros absurdos, proibia aos negros o direito ao voto e a determinados direitos (como o acesso a certos hospitais, escolas e empregos), a África do Sul deixou de ser condenada internacionalmente por organismos como a Organização das Nações Unidas, por exemplo. Esse avanço também seria repercutido no âmbito esportivo mundial.

A primeira demonstração da capacidade sul-africana de organizar e sediar um evento esportivo de caráter mundial se deu em 1995, durante a Copa do Mundo de Rúgbi, realizada no segundo ano do governo de Nelson Mandela — o filme “Invictus”, de Clint Eastwood, retrata esse episódio histórico. Oito anos depois, em 2003, o país receberia a Copa do Mundo de Críquete.

Nenhum desses eventos, no entanto, se compara à grandeza e à importância de um mundial de futebol, que tradicionalmente é mais acompanhado dos que os Jogos Olímpicos. Alguns números ilustram a tarefa que os sul-africanos estão enfrentando: em 2006, a Copa da Alemanha foi vista por 3.353.655 de pessoas nos estádios e por cerca de 27 bilhões de pessoas em todo o mundo, na audiência televisiva acumulada dos 64 jogos, transmitidos por 376 emissoras de todo o planeta.

Legado

O ex-presidente Nelson Mandela prestigiará a abertura do Mundial, em 11 de junho, na cidade de Johanesburgo. Sua presença certamente será a mais aplaudida entre as personalidades presentes e simbolizará o fim de um ciclo, iniciado 20 anos atrás, com o fim do apartheid: a de que seu país, após décadas de reacionarismo político, conseguiu dar um passo à frente e é capaz de, unido, organizar um evento da magnitude de uma copa do mundo de futebol.

Além disso, a organização da Copa deixará um importante legado para a nação, tanto na área esportiva quanto no que diz respeito à infraestrutura. Governo e iniciativa privada investiram pesado em áreas como telecomunicações, transportes, turismo e segurança para atender às exigências impostas pela Fifa ao país-sede de cada torneio. Após o mês de festas e disputas, essa herança será usufruída pela população.

Com o exemplo recente do Brasil, que em um curto período de tempo foi capaz de garantir a organização da Copa seguinte, em 2014, e dos Jogos Olímpicos, em 2016, o continente africano vê no Mundial de 2010 uma oportunidade única. Dirigentes esportivos africanos já especulam que em 2020 será a vez de seu continente abrigar uma edição das Olimpíadas. Membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) já admitem a existência de um lobby nesse sentido.

Americanos, asiáticos e europeus talvez não tenham a exata noção do que significa para um africano organizar eventos de tal porte. Uma frase do sul-africano Danny Jordan, presidente do comitê organizador da Copa do Mundo de 2010, é singular para essa compreensão: “O direito de realizar o Mundial foi tão importante para a África do Sul quanto a libertação de Nelson Mandela e o fim do apartheid. Acho que foi quase uma segunda libertação para nós”, resumiu.

Texto de minha autoria publicado originalmente no Vermelho

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os compatriotas de Woody Allen

Estava em algum site por aí hoje: O diretor americano Woody Allen considera que a maioria de seus compatriotas são gordos e sexualmente complexados. "Tudo ali é expressão do medo e da repressão sexual: a loucura religiosa, o fanatismo pelas armas, a extrema-direita louca. Eles têm uma visão da sexualidade marcada por duvidosas leis morais", afirma Allen, em entrevista antecipada hoje pelo jornal "Die Zeit". O diretor de "Vicky Cristina Barcelona" considera que o sexo é utilizado nos Estados Unidos "como uma arma dramática, assim como a violência" e que as muitas cenas de sexo nos filmes produzidos em seu país são "simplesmente entediantes".

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura