Pular para o conteúdo principal

Flor da idade

Faz uns três dias que ouço de forma insistente a mesma música. E quero ouvir mais vezes. Talvez escrevendo sobre ela isso passe.

Nunca fui muito fã de Drummond e continuo não sendo, apesar de, obviamente, reconhecê-lo como um dos maiores poetas da nossa língua. É questão de gosto mesmo, estilo, talvez ignorância, sei lá... Fico mais com João Cabral e Vinícius.

As frases "enrolatórias" (ou o chamado nariz-de-cera jornalístico) antecedem, mais uma vez, um texto sobre Chico, o Buarque de Hollanda. Explico mais abaixo:

Semana retrasada fui rever o show da Mônica Salmaso, a respeito do qual já escrevi por aqui no ano passado. Muito bom de novo (talvez até melhor, mas não é sobre isso o texto) e com uma novidade: além das 14 músicas do disco sobre a obra do Chico, ela emendou também "Flor da idade", composta em 1973 e, até onde eu saiba, só registrada no show dele com a Bethânia, de 1975.

O que sempre chama a atenção de quem ouve a música é a óbvia homenagem, referência ou qualquer outra palavra que se queira dar ao poema "Quadrilha" do Drummond, reproduzido abaixo:

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes
que não tinha entrado na história.

Muito bem. "Flor da idade", em minha modesta opinião, é 3254 vezes melhor. Mas isso é o de menos. O que me fez parar um pouco e escrever alguma coisa a respeito da música veio, inicialmente, do modo como a Salmaso cantou no show. De forma clara, quase pausada, sobre um arranjo bem diferente do original. E aí é que finalmente eu prestei atenção no quão magistral é a letra, por unir a homenagem a Drummond e fazer um retrato muito legal de uma fase de nossas vidas a partir de uma série de jogos de palavras e aliterações absurdas.

Eis a letra:

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor


Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor


Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor


Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora
Que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava
Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha


Proponho um exercício bobo: pegue os dois versos a seguir e leia-os em voz alta:

"A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia" e "Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua". Conseguiu na boa, sem gaguejar? Agora ouça a música e tente cantar junto com Chico. Conseguiu também? Então ouça mais umas 33 vezes e fique se lembrando da primeira festa, da primeira fresta, do primeiro copo, do primeiro corpo...


Comentários

Anônimo disse…
Me diverti muito lendo isso... Vou cantar em voz alta a hora que estiver em casa... No trabalho não dá, né...
Ygor Moretti disse…
Po num gosta de drummond que absurdo!! hehehe

muito boa mesmo a letra, naum ouso comparar mas é excelente tb.
abraço!!

Postagens mais visitadas deste blog

Bismarck, unificação e as consequências da industrialização alemã

É impossível afirmar que um evento com a magnitude da Primeira Guerra Mundial tenha ocorrido por conta de um fenômeno isolado – são vários os elementos envolvidos. No entanto, para muitos historiadores e analistas, o papel geopolítico desempenhado pela Alemanha no final do século 19 foi um fator preponderante para o início do conflito. Este trabalho pretende analisar, pelo viés do desenvolvimento econômico da Alemanha, de que maneira um país unificado somente em 1871 pôde se transformar, em pouco mais de quatro décadas, em uma nação de primeira grandeza – a ponto de ser um dos protagonistas da Primeira Guerra. Que elementos – externos e internos – contribuíram para essa ascensão? Até que ponto é correto responsabilizar os alemães pelo estopim do conflito que viria a tirar as vidas de 19 milhões de pessoas? De 1789 a 1848 – anos cercados por revoluções Uma geração inteira, tanto na França quanto nos estados germânicos, cresceu sob o impacto direto das consequências da Revolução Francesa...

O dilema dos EUA: resgatar o passado ou construir um novo futuro?

RESENHA DE "ESTAS VERDADES", DE JILL LEPORE Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, em 2008, utilizando-se de um slogan que ganhou fama mundial: “Change”. Nem durante a campanha eleitoral e tampouco no decorrer de seus dois mandatos foi possível entender com clareza qual seria essa mudança. Em 2016, Donald Trump conseguiu ser muito mais explícito ao prometer que tornaria a América grandiosa novamente. O empresário e apresentador de TV optou pelo resgate de valores do passado estadunidense para atingir em cheio ― e com sucesso ― o cidadão insatisfeito com o presente incerto deste início de século 21. Após oito anos de ações abstratas do governo Obama, seu sucessor não se furtou em propor uma série de políticas xenófobas, segregacionistas e protecionistas para chegar à Casa Branca.   Desde o primeiro dia de seu mandato, pairaram sobre Trump nuvens de ameaças à democracia dos Estados Unidos. Seu desastroso adeus ― marcado pela tentativa de autogolpe em 6 de janeir...

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura...