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Argentina e a importância de Sarmiento

Achei uns textos antigos. Vou republicar por aqui.


Contradições do liberalismo na Argentina: Uma análise da trajetória de Domingo Faustino Sarmiento

Em 1922, o Prêmio Nobel de Literatura Jacinto Benavente visitou por um mês a Argentina. A cada cidade por onde passava, jornalistas e curiosos perguntavam a ele suas impressões a respeito do país e de sua população, tarefa da qual o escritor se esquivou como pôde até o dia de sua partida. Ao subir no navio que o levaria de volta à Europa, Benavente disparou um verdadeiro “tiro de canhão”, naquela que seria sua definição sobre o povo local: “Formem a única palavra possível com as letras que compõem a palavra ‘argentino’”[1].

Desde então o caso é lembrado como piada para lembrar que o único anagrama possível com as letras de “argentino” é “ignorante”.

A obsessão de Sarmiento

Os argentinos de mais idade se lembram de tempos em que as escolas ensinavam aos estudantes uma série de hinos: o Hino Nacional, o Hino à Bandeira, a Marcha de São Lourenço e o Hino a Sarmiento, este último em homenagem àquele que se tornou um herói nacional, cuja figura só não era mais popular do que a de San Martín, o Libertador. Seu feito memorável teve por base a educação para todos, iniciativa que transformou a Argentina em um modelo[2] para a América Latina.

“Pai da sala de aula”, “inventor da escola” e “mestre universal” são algumas[3] das marcas que ficaram impressas na imagem de Sarmiento. Se a Argentina do final do século 19 debateu com afinco o tema da educação e da cultura, grande parte desse mérito se deve ao escritor, intelectual e político, que chegaria à Presidência da República em 1868. Coube a Sarmiento o desafio de demonstrar à elite e à população de seu país que era do Estado a responsabilidade de educar suas crianças e jovens, ditando seus métodos pedagógicos, formando adequadamente os professores e pagando a eles salários justos.

Sarmiento foi um liberal, na acepção da palavra – com todos os defeitos e virtudes que tal adjetivo continha na segunda metade do século 19. No entanto, se algo fica claro da leitura de sua biografia (como intelectual e político), é a constatação de que não existiram obras de doutrina e de filosofia política que afetaram diretamente sua trajetória[4]. O que ocorre, de fato, é uma sucessão de acontecimentos, publicações, polêmicas, debates e ações – estas últimas em sua fase de homem público, seja como senador ou presidente da República.

Sarmiento era obcecado pelo tema da educação universal. Seu trabalho como intelectual e político teve como foco a luta contra a parte de sua nação estigmatizada na anedota acima narrada. Para ele, a Argentina por séculos ficou dividida entre um país atrasado (composto por homens e mulheres de pele mais escura e moradores do interior) e outro moderno e cosmopolita (branco e habitante das grandes cidades). Se por um lado sua preocupação com a educação de todo o povo era altruísta, por outro, o preconceito entranhado desde os tempos de sua formação e início de vida adulta[5] trouxe manchas para sua biografia de estadista.

A Geração de 1837

As ideias liberais começaram a ganhar força na Argentina, assim como no restante do planeta, ao passo em que sua sociedade passou a contar com um número maior e mais bem organizado de burgueses. Após o processo de independência, iniciado em 1810, parte da elite do país teve a oportunidade de tomar conhecimento com mais profundidade dessa ideologia, especialmente a partir das experiências norte-americanas e francesas.

Ao lado de Esteban Echeverría, Juan Bautista Alberdi e Bartolomé Mitre, Domingo Faustino Sarmiento foi um dos intelectuais que formaram a chamada “Geração de 1837”[6]. Seus membros tiveram o grande mérito de transformar o objeto de seus estudos em realidade. Mais do que isso: em políticas e instituições eficientes, colocando em prática seu ativismo[7].

Para Katra, a “Geração de 1837 talvez tenha sido o mais articulado e consciente grupo de intelectuais latino-americanos no século 19”. Segundo o historiador, o grupo não foi apenas o protagonista de um processo que culminou em um Estado liberal; Sarmiento e seus pares acabaram por moldar os parâmetros sociais e culturais da Argentina, conseguindo o reconhecimento pela mudança que acabou por transformar o perfil de toda uma população[8].

O ideário liberal ganhou mais força entre os intelectuais e parte da população argentina em fins da década de 1840, em pleno segundo governo (1835-52) de Juan Manuel Rosas. Nessa fase, o grupo de Sarmiento viu-se obrigado a se exilar, por conta da truculência do mandatário.

Sarmiento via Rosas como símbolo-mor do caudilhismo em seu país. Por conseguinte, via o caudilhismo como “o maior problema da Argentina de seu tempo, considerando-o sinônimo de ignorância, atraso, barbárie, violência e anarquia”[9]. Com sua queda, em 1852, os exilados puderam retornar ao país e iniciar as bases das transformações liberais que iriam florescer com maior vigor nos anos 1880’s, com o fortalecimento da classe burguesa[10].

Facundo

Rosas foi derrubado após um longo período de luta armada, entre 1839 e 1852. Nesse ínterim, Sarmiento escreveu sua principal obra: Facundo, na qual expôs seu conceito de civilização e barbárie, modelo que viria a servir de inspiração para a geração de intelectuais argentinos que sucedeu a ele e seu grupo.

Para Katra[11], Facundo é um brilhante trabalho sociológico, histórico e político. A despeito do alto índice de analfabetismo em toda a América Latina em meados do século 19, o livro aparece em um momento no qual os panfletos políticos ganharam relevância na região. Sarmiento usa de sua verve para descrever, de maneira muito crítica, a situação política da Argentina desde sua independência até a década de 1840. Por centenas de páginas, o autor expõe também seu projeto liberal, assim como toda a influência iluminista de sua formação e a dicotomia existente entre a “civilização” das grandes cidades e a “barbárie” dos pampas, com seus gaúchos e caudilhos.

É na descrição feita em Facundo sobre o atraso do interior argentino que se encontram os primeiros traços públicos de seus preconceitos. Sarmiento fala com alívio da quase extinção da raça negra no país e descreve o gaúcho como alguém que “ama a ociosidade” e como o “resultado desgraçado”[12] da mescla entre negros e indígenas. Sobre suas casas e vilas, fala de “sujeira e pobreza por todas as partes” e de um “aspecto geral de barbárie”[13].

Vê-se também que grande parte do preconceito de Sarmiento não passa de mera birra, talvez explicada por algum aspecto psicológico de sua formação. O intelectual critica até mesmo as roupas típicas do gaúcho, como o chiripá, defendendo o fraque como a vestimenta ideal do argentino[14]. E, em alguns momentos, soa completamente inconseqüente, ao afirmar que “o sangue dessa gentalha criolla, incivilizada, bárbara e rude é a única coisa de humana que eles têm”[15].

O mandato de Sarmiento

Para Sarmiento, o princípio ordenador ante o ocaso, a anarquia e a ignorância do interior do país era tudo aquilo que fosse urbano. Ao eleger-se presidente, em 1868, trouxe consigo o liberalismo como doutrina e o positivismo como estratégia, em detrimento das diferenças regionais e do caudilhismo[16]. Seu projeto previa um Estado com uma Constituição nacional, com estímulo ao livre-comércio e a garantia dos direitos civis. “Um Estado moderno, com o monopólio em matéria de defesa, educação e relações exteriores, que defina a Argentina sob o pressuposto da liberdade de comércio e de religião”[17].

A ênfase e a base de todo esse discurso, como não poderia deixar de ser, situava-se na educação, como sinônimo de civilização. “Educar as massas na escola primária, abrir os portos e os rios ao comércio universal, remover todos os obstáculos morais e materiais para a livre expansão das forças econômicas”[18]. Era tudo o que a ascendente burguesia queria ouvir.

De fato, a maior preocupação de Sarmiento no cargo de presidente da República foi o impulso dado à educação pública, a partir de um conceito que valorizasse a liberdade individual[19]. Para ele, somente a partir da educação é que se venceria o atraso cultural e se conquistaria a unidade do país. “Educar al soberano”[20] tornou-se um slogan que definiu com propriedade a concepção política de Sarmiento, especialmente depois de o presidente ver in loco nos Estados Unidos o poder e as possibilidades da publicidade.

Outro fator importante de seu governo foi a importância dada a política que estimulassem a questão da unidade nacional – novamente a partir do modelo liberal imaginado pelo presidente e seu grupo de intelectuais. Sarmiento deixou o cargo em 1874, em pleno processo de desentendimento entre unitaristas e federalistas, fase que só se encerraria em 1880, quando o país passou a ser governado a partir de Buenos Aires, transformada em Distrito Federal no mesmo ano[21].

Para os partidários da Geração de 1837, governar era sinônimo de povoar[22]. Por esse aspecto, o processo defendido por Sarmiento apostou também no incentivo à imigração europeia, como forma de implementar no interior do país novos hábitos que fossem capazes de mudar radicalmente o panorama de atraso que, segundo os liberais, caracterizava o caudilhismo e o povo dos pampas.

Ao longo de 1872, o governo argentino contabilizou 35 levantes indígenas[23] junto a diversas províncias do país – algo que resultou na fúria do presidente. Para Sarmiento, era preciso dar uma resposta firme a esse tipo de iniciativa, com o respaldo da elite e dos habitantes urbanos. O Estado, por fim, acabou assumindo algo que se chamou de “conquista do deserto”[24], seja para abrigar os forasteiros imigrantes ou para transferir grandes porções de terra a particulares poderosos – a um custo mínimo, por supuesto.

Conclusão

Para Borda[25], Sarmiento “foi o primeiro político pós-independista que governou realmente sobre toda a Argentina e [...] pode ser considerado o arquiteto da unidade nacional argentina, ainda que não tenha criado formalmente instituições nacionais”. Ao final das contas, ele teve o grande mérito de transformar o sistema educacional argentino, com resultados positivos também para a cultura do país. Autores diversos apontam seus avanços, mas nos últimos anos têm surgido novos trabalhos que colocam o dedo na ferida que ao longo do século 20 foi camuflada por homenagens como o já citado Hino a Sarmiento.

“Uma América livre, asilo dos deuses todos, com língua, terra e rios livres para todos”[26], diz o epitáfio do ex-presidente, em consonância à sua obra intelectual e política. O problema está no caminho escolhido para colocar em prática sua ideologia. Em seis anos, o “mestre universal” criou mais de mil bibliotecas, criou cursos escolares noturnos para trabalhadores e organizou um Estado muito mais centralizado do que aquele que imaginara 20 anos antes[27]. No entanto, não respeitou a tradição e a história do povo do interior, submetendo-o a um projeto de país que, em nome do progresso e do liberalismo, resultou em perseguição, preconceito e falta de representatividade ao longo de décadas.

Shumway[28] lembra que não foi só em Facundo que grande parte do pacote de maldades de Sarmiento veio à tona. Ele lembra que as páginas de Campaña del Ejército Grande, de 1852, mostram os piores aspectos da personalidade do ex-presidente, como sua ambição, sua constante auto-promoção, seu desdém pelas classes populares, seu encantamento pela Europa e Estados Unidos e sua incapacidade de reconhecer outros talentos. De fato, a mescla entre pensamento liberal e ojeriza ao caudilhismo e aos povos do interior acabou por gerar frutos, reunidos na chamada Geração de 1880.

Essa nova geração acabou por colocar definitivamente em prática o projeto de país idealizado por seus antecessores, “devido em grande medida, à conjuntura social, econômica e política que a Argentina apresentava no final do século 19”[29]. Seus expoentes acabaram por herdar o desprezo pelas tradições criollas, transformando esse sentimento em um elemento de coesão. Uma diferença, no entanto, permitiu que os intelectuais de 1880 tivessem mais sucesso do que os de 1837: ao contrário de Sarmiento e seus pares, a nova geração já fazia parte da elite política do país. Mesmo com os conflitos que vieram à tona em 1890, sua ideologia prevaleceu durante todo o século 20 e contribuiu incontestavelmente para o tipo de sociedade, costumes e para a forma como o argentino se vê até os dias de hoje.

[1] AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Bei Comunicação, 2002 – pg. 36.

[2] Ibid – pg. 135.

[3] Ibidem.

[4] GALVANI, Victoria. Domingo Faustino Sarmiento. Madri: Ediciones de Cultura Hispánica, 1990 – pg. 48.

[5] KATRA, William. The Argentine Generation of 1837. Cranbury: Associated University Presses, 1996 – pg. 30.

[6] Ibid – pg. 8.

[7] Ibidem – pg. 9.

[8] Idem.

[9] GREJA, Camila Bueno. Carlos Octavio Bunge e José Ingenieros: entre o científico e o político: pensamento racial e identidade nacional na Argentina (1880-1920). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009 – pg. 23.

[10] KATRA – pg. 11.

[11] Ibid – pg 12.

[12] SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo. Buenos Aires: Espasa, 1993 – pg. 156.

[13] Ibid – pg. 77.

[14] GALVANI, Victoria. Domingo Faustino Sarmiento. Madri: Ediciones de Cultura Hispânica, 1990 – pg. 40.

[15] Ibid – pg. 42.

[16] Ibidem – pg. 37.

[17] Idem.

[18] Ibidem – pg. 38.

[19] GREJA – pg. 26.

[20] GALVANI – pg. 39.

[21] GREJA – pg. 27.

[22] Idem.

[23] GÁLVEZ, Manuel. Vida de Sarmiento. Buenos Aires: Ediciones Dictio, 1979 – pg. 575.

[24] ROMERO, Luis Alberto. História Contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 – pg. 18.

[25] BORDA, Juan Gustavo. De Sarmiento a Borges. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1995 – pg 23.

[26] GALVANI – pg. 32.

[27] Ibid – pg. 38.

[28] SHUMWAY, Nicolas. The invention of Argentina. Berkeley: University of California Press, 1991 – pg 101.

[29] GREJA – pg. 30.

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