Pular para o conteúdo principal

Kane e as derrotas de Orson Welles

Ano sim e outro também aparecem por aí as velhas listas com os melhores filmes da história. São raras aquelas em que “Cidadão Kane” não aparece ao menos no top 3. Para muita gente que entende do ramo, nada mais justo, em especial por seus aspectos técnicos revolucionários e sua narrativa inovadora. Há um ponto, no entanto, que é pouco abordado e o engrandece ainda mais: sua contextualização política em um período delicadíssimo para a história dos Estados Unidos e de todo o planeta.

“Kane” foi planejado e produzido em meio aos anos que marcaram a ascensão de diversos regimes totalitários ao redor do mundo. Em 1941, ano de sua estréia, a França estava ocupada pela Alemanha nazista, a Europa se encontrava em polvorosa e os Estados Unidos, ainda se recuperando da crise econômica da década anterior, viviam o início de sua predominância política em nível mundial.

Se por um lado o governo Roosevelt se destacou por uma série de políticas progressistas, os anos de transição entre as décadas de 30 e 40 foram marcados pelo fortalecimento de setores conservadores, anticomunistas e favoráveis à entrada imediata do país na guerra. Diante desse cenário, o governo considerou por bem incentivar a produção de obras culturais que se contrapusessem ao reacionarismo que ganhava naqueles idos seu formato inicial – e cujo ápice seria visto durante a fase de caça às bruxas do macarthismo, já depois de encerrada a Segunda Guerra Mundial.

Vem desse incentivo do governo Roosevelt o surgimento de grupos teatrais como o Mercury, no qual Orson Welles – e grande parte do elenco de “Kane” – ganhou notoriedade. Essa política fazia parte do WPA (Works Progress Administration), programa voltado para a geração de empregos durante a Depressão. Havia liberdade criativa e o fomento necessário para experimentação, além de artistas compromissados com o modelo político adotado.

Welles chegou a apresentar “MacBeth” no Harlem, com a participação de 137 negros, entre atores e outros profissionais do teatro. Em 1937, sua leitura de “Julio Cesar” se transformou em ataque direto às políticas de Hitler. Antes de pensar seriamente no cinema, o jovem diretor (25 anos no começo de 1941) almejava encenar toda a obra de Shakespeare a preços populares e em bairros sem o glamour da Broadway. Apesar de sua inexperiência no ramo cinematográfico, Welles já acumulava a pecha de gênio do teatro e do rádio, e conseguiu carta-branca para rodar o filme que bem entendesse.

Cinema além do entretenimento

Nesse contexto, a personagem-título do filme representa exatamente o estereótipo do totalitarismo ascendente em algumas partes do planeta, defendido por setores políticos norte-americanos e insuflado por parte de sua imprensa. Não por acaso, William Randolph Hearst, magnata das comunicações e inspirador do “Kane” levado às telas, possuía relações com membros do governo nazista alemão e costumeiramente utilizava as paginas de seus jornais para atacar as ações “socialistas” de Roosevelt. Orson Welles, ao longo das quase duas horas de filme, consegue criticar, denunciar, ironizar e apresentar com maestria um tipo de cinema que alia excelência técnica e dramática à reflexão crítica.

Assim como Serguei Eisenstein e Leni Riefenstahl (cada qual com seus vieses), Orson Welles contribuiu para aumentar a lista de gênios que se valeram da arte como ferramenta de uso político. Contudo, embora estivesse brigando no canto correto do ringue, a história foi cruel com o diretor de “Cidadão Kane”, ao impor-lhe duas derrotas por nocaute.

Hearst era um crítico voraz do WPA e de grande parte das políticas de Roosevelt – como a decisão de aumentar os impostos daqueles com mais de US$ 500 mil na conta bancária. Se apenas por esse motivo o choque com Welles seria inevitável, depois de “Kane” a situação fugiu do controle. Sem conseguir impedir a estréia do filme, o empresário dedicou inúmeras páginas de seus jornais para estampar no diretor prodígio o carimbo de “comunista” e utilizou toda sua influência junto aos estúdios de cinema para boicotar sua carreira.

No campo político, apesar da vitória dos Aliados no conflito mundial, Welles viu o surgimento e o recrudescimento do macarthismo em seu país, bem como a ascensão de dois presidentes conservadores (Harry Truman e Dwight Eisenhower) no período seguinte à Segunda Guerra. Dentro de seu métier, além de nunca mais ter produzido nenhum outro filme à la “Kane” e de ter sido, de fato, boicotado pelos grandes estúdios, o cineasta assistiu, impotente, à vitória e à popularização de um modelo artístico completamente diferente de sua proposta: Hollywood.

Comentários

Khalila Neferet disse…
Textos visionários que acrescentam muito sabem falar em política sem longos discursos direcionados apenas aos entendedores. Por que não há um perfil e um espaço para seguidores?

Postagens mais visitadas deste blog

Os compatriotas de Woody Allen

Estava em algum site por aí hoje: O diretor americano Woody Allen considera que a maioria de seus compatriotas são gordos e sexualmente complexados. "Tudo ali é expressão do medo e da repressão sexual: a loucura religiosa, o fanatismo pelas armas, a extrema-direita louca. Eles têm uma visão da sexualidade marcada por duvidosas leis morais", afirma Allen, em entrevista antecipada hoje pelo jornal "Die Zeit". O diretor de "Vicky Cristina Barcelona" considera que o sexo é utilizado nos Estados Unidos "como uma arma dramática, assim como a violência" e que as muitas cenas de sexo nos filmes produzidos em seu país são "simplesmente entediantes".

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura