Pular para o conteúdo principal

Sobre livros e a curiosidade

Reproduzo aqui texto do chapa André Toso, publicado originalmente no "Sete doses". Jornalista de mão cheia e futuro psicanalista, o rapaz atualmente só tem o defeito de ter se tornado um completo desleixado nas práticas desportivas - mal que afeta grande parte daqueles que fazem da escrevinhação seu ofício, infelizmente.

André Toso é o cara que me apresentou às canções de "Guinga" - e só por isso ele merecerá meu respeito e gratidão até os 48 minutos do segundo tempo da minha existência. Mas, além disso, ele é o cara com o qual meus temores, opiniões, indagações, indignações e esperanças sobre educação mais se aproximam. Eis por que seu texto segue abaixo:

Sobre livros e a curiosidade

Revoltei-me de vez com a escola durante o segundo colegial. Era quarta-feira, estudava no Objetivo, em Jundiaí, resolvi deixar a aula de física de lado e ir para a biblioteca. Estava sentado na mesa, quieto, lendo “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoiévski (1821-1881), quando a inspetora do colégio chegou. Tomei uma das maiores broncas da minha vida e fui suspenso por um dia. Só fui retomar a leitura no terceiro ano da faculdade. Na época, tinha 16 anos, não sabia direito quem era Dostoiévski e que no futuro aquele seria o melhor livro que eu leria em minha vida. Na verdade, apenas estava interessado no nome intrigante e na capa que me chamara atenção. Mas a inspetora, cruelmente, reprimiu a minha curiosidade.

Sempre fui resistente ao desestímulo literário que a maioria das escolas impõe aos seus alunos. A aula de literatura – pensando hoje como jornalista e, quem sabe, futuro professor – era patética. Preocupada em preparar os estudantes para o vestibular, a professora colocava em tópicos os períodos e suas características: informações insossas, descartáveis e desprovidas de qualquer sentido. Decorar o que formou o estilo do Indianismo é tão importante e excitante para a formação de um ser humano quanto o ato de roer as unhas.

Muitos dos melhores alunos do colégio que eu estudava hoje odeiam ler e não se interessam por nenhum tipo de arte ou manifestação cultural. A escola formatou a criatividade e matou qualquer tipo de curiosidade que existia dentro deles. A indicação de leituras incompatíveis com a idade e com a cognição em formação levou-os a se enojarem e se assustarem ao pensar em um livro. Ler “O Memorial do Convento”, de José Saramago, no primeiro colegial, por exemplo, é quase tão absurdo quanto empossar um garoto de sete anos como presidente de uma grande empresa.

Chega a ser engraçado pensar que a leitura é imposta no colégio como simples obrigação para o vestibular e que o famigerado “programa” se esqueça de orientar o aluno sobre o que um livro significa de fato. O prazer de ter a oportunidade de encontrar nas palavras de um autor os sentimentos que ele nutria na época em que vivia, encontrar beleza estética em parágrafos bem construídos e se envolver com personagens e situações que lhe fazem pensar na vida são descartados. Tudo isso não importa? Com 18 anos, mais do que nunca, o ser humano quer pensar na vida e não em um gabarito o qual até um macaco pode escolher entre a, b ou c.

Durante os três anos do meu colegial, a inspetora insistia em dizer que eu jamais chegaria a lugar algum com a minha postura. Matava aulas constantemente, desafiava professores e discutia com colegas que só sabiam falar de carros e motores. Tenho que admitir que eu era um moleque, não faria hoje as mesmas coisas daquele tempo. Mas a tal inspetora fazia questão de jogar na minha cara como eu seria um perdedor no futuro. No fim do terceiro ano, quando passei no vestibular, ela ligou em minha casa me convidando para posar para uma foto dos estudantes que entraram nas principais faculdades do País. Entre elas estava a minha, a Cásper Líbero. Não apareci, obviamente, mas desliguei o telefone com um sorriso maldoso e sarcástico no rosto. Apesar de nunca me esforçar para concretizá-la, a vingança sempre foi um dos meus pontos fracos.

Comentários

André Toso disse…
Muito me emocionam suas palavras. Vamos jogar tênis terça-feira?
Unknown disse…
Rapaz...Saramago difícil de ler no colegial? Porra, ainda bem que você largou o russo pra lá mesmo na época.
E desculpa, ter conflito com inspetor de alunos é coisa para quinta série né? No colégio já dá pra fazer meio que der na telha, não? Ou será que sou de uma época tão diferente assim? Duvido.
Lendo seu texto aí dá impressão que você só poderia ler o que te passavam na escola...
E na Cásper Líbero, não precisa o macaquinho acertar a, b ou c para entrar. Se ele acertar, pode até dar uma aulinhas...
André Toso disse…
No Objetivo Jundiaí era impossível fazer o que desse na telha. Aquilo era um quartel general muito pior do que minha escola do ginásio, que era muito mais libertária e a quem eu devo o pouco de sensibilidade que me sobrou.

O único objetivo (como o próprio nome desse colégio diz) era fazer os alunos passarem na USP ou na Unicamp. Do contrário, o aluno só prestava para pagar a mensalidade.

Como eu poderia ler outras coisas que não o que me passavam na escola se eu não tinha incentivo nenhum? E a Internet, que hoje abre portas, ainda não existia.

E "Memorial do Convento" é um livro difícil para qualquer ser humano. Imagine para um garoto do interior sem experiências literárias? Hoje, consigo lê-lo, na época achava uma chatice, terrível.

E, por fim, em qualquer vestibular de multipla escolha o macaquinho tem uma chance de entrar.

Postagens mais visitadas deste blog

Os compatriotas de Woody Allen

Estava em algum site por aí hoje: O diretor americano Woody Allen considera que a maioria de seus compatriotas são gordos e sexualmente complexados. "Tudo ali é expressão do medo e da repressão sexual: a loucura religiosa, o fanatismo pelas armas, a extrema-direita louca. Eles têm uma visão da sexualidade marcada por duvidosas leis morais", afirma Allen, em entrevista antecipada hoje pelo jornal "Die Zeit". O diretor de "Vicky Cristina Barcelona" considera que o sexo é utilizado nos Estados Unidos "como uma arma dramática, assim como a violência" e que as muitas cenas de sexo nos filmes produzidos em seu país são "simplesmente entediantes".

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura