Pular para o conteúdo principal

O Brasil e seu passado musical

Há no país duas tendências no país a respeito de seu passado musical que me incomodam. A primeira – e mais grave – é deixar que verdadeiros tesouros caiam no esquecimento. A segunda é atribuir aos poucos personagens que têm suas obras homenageadas um grau de genialidade exagerado.

Marisa Monte diz que gosta de muita coisa sobre música, mas poucas fazem com que ela se emocione tanto como a Velha Guarda da Portela. Paulinho da Viola, ao falar sobre os talentosos velhinhos, comenta que o mais especial é vê-los juntos, fazendo o que gostam, exaltando o samba, sua escola e seu cotidiano. Opiniões diferentes de dois ícones que louvam o mesmo objeto.
Opiniões que dão caldo para uma boa discussão

O diálogo de Marisa e Paulinho se dá no documentário sobre a Velha Guarda da Portela, "O mistério do samba", em cartaz nos cinemas. Muita gente tem falado que o filme é o "Buena Vista Social Club" brasileiro e a comparação é por muitas vezes realmente inevitável. Mas, com todo o respeito aos velhinhos portelenses, fico com os cubanos nessa briga.

Mas falemos tão-somente de música brasileira – a grandeza da música cubana é assunto para outro texto. Durante o filme, Paulinho da Viola volta a fazer um comentário muito feliz quando fala que não há muito o que explicar, e sim a sentir, sobre a Velha Guarda. É nesse ponto que vejo algo bem interessante. É esse estar junto que faz do grupo algo tão especial e carismático – e é sua simplicidade que o torna riquíssimo musicalmente. Não me desce pela goela ouvir elogios quase despudorados sobre seu talento (que é grande, obviamente), como se suas composições estivessem à altura de um Cartola ou – que os deuses da música me perdoem – de um Noel Rosa.

Suspeito que o próprio Paulinho tenha noção dessa diferença (também acentuada na comparação com sua própria obra), mas nem com um revólver na cabeça falaria algo assim, de modo tão claro, muito menos em um filme em homenagem à Velha Guarda de sua escola de coração. Mas é justamente sob essa análise e a partir da emoção sentida por Marisa Monte que os simpáticos velhinhos devem ser reverenciados. Atribuir-lhes mais talento ou importância é confundir resgate histórico com idolatria, algo levado a cabo por alguns e que, se fosse seguido pelos diretores do filme, jogaria por terra o belo esforço documental da obra.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os compatriotas de Woody Allen

Estava em algum site por aí hoje: O diretor americano Woody Allen considera que a maioria de seus compatriotas são gordos e sexualmente complexados. "Tudo ali é expressão do medo e da repressão sexual: a loucura religiosa, o fanatismo pelas armas, a extrema-direita louca. Eles têm uma visão da sexualidade marcada por duvidosas leis morais", afirma Allen, em entrevista antecipada hoje pelo jornal "Die Zeit". O diretor de "Vicky Cristina Barcelona" considera que o sexo é utilizado nos Estados Unidos "como uma arma dramática, assim como a violência" e que as muitas cenas de sexo nos filmes produzidos em seu país são "simplesmente entediantes".

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura