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Rubens, o obstinado

Rubens trabalha no mesmo prédio que eu. Ele é um dos porteiros do edifício, responsável pelo turno entre 15h e 22h. Sujeito educado, de fala mansa e sempre disposto a uma prosa, há cerca de quatro meses comecei a reparar que ele sempre aproveitava seu tempo livre para estudar. “Concurso público”, explicou certo dia, ao me chamar para tirar uma dúvida de português.

Rubens tem dois empregos. O de porteiro na Liberdade é seu segundo. O primeiro é fruto de outro concurso público, mas para nível de Ensino Fundamental. “Agora estudo para um de nível um pouco melhor, de Ensino Médio”, comentou.

Coisa de três semanas atrás, numa noite em que esperava pela Aline, vi que Rubens digitava algo num teclado meio velho. Na tela do computador, no entanto, apareciam somente as imagens das câmeras de segurança do prédio. Fiquei sem entender, mas Rubens tinha a resposta: “Não posso tirar as imagens das câmeras da tela, então uso o teclado para praticar minha digitação”.

Rubens havia passado para a segunda fase do concurso para fiscal de alguma coisa. Agora, na etapa final, os candidatos terão que digitar um texto de dois mil toques em menos de 11 minutos. “Você acha que consigo?”, me perguntou, mostrando a velocidade com que conseguia digitar.

Fiquei preocupado. Seus dedos hesitam bastante diante do teclado, especialmente sem poder conferir na tela o que está certo ou errado. Em outra noite dei umas dicas para agilizar um pouco a movimentação dos dedos e mostrei algumas colunas de jornal com os cerca de dois mil caracteres do teste.

Rubens ainda não sabe quando a prova da segunda fase será marcada – tem certeza somente de que será após o segundo turno das eleições. “Se eu passo nesse concurso estou feito. Se não passar, ao menos terei aprendido a digitar direito”, disse dia desses. No último feriado, chegou a ficar treinando em casa, com a tela do computador disponível, até duas da manhã. Ontem, ao ir embora, ele estava praticando, como sempre. Aos poucos, vai ganhando velocidade.

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