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Quando o ranço conservador contamina a crítica cultural

A revista “Bravo!”, na edição de fevereiro deste ano, tratou em sua reportagem de capa sobre a relação entre artistas renomados e seu apoio a determinadas ideologias políticas. Ao velho estilo rasteiro de “Veja”, o texto tentou explicar de que maneira um vencedor do Prêmio Nobel, como o escritor colombiano Gabriel García Márquez, pode ter boas relações e ser um admirador confesso do líder cubano Fidel Castro e de sua trajetória.

A capa da revista e sua reportagem chinfrim vieram à mente neste domingo, durante a leitura da entrevista feita pelo repórter francês Salim Lamranium com a blogueira cubana Yoani Sánchez. Conhecida porta-voz de todas as forças que se opõem a Cuba e a seu regime, ela age na mesma linha de “Bravo!” ao criticar García Márquez:

Como explica esta avalanche de prêmios, assim como seu sucesso internacional?
Yoani Sánchez - Não tenho muito a dizer, a não ser expressar minha gratidão. Todo prêmio implica uma dose de subjetividade por parte do jurado. Todo prêmio é discutível. Por exemplo, muitos escritores latino-americanos mereciam o Prêmio Nobel de Literatura mais que Gabriel García Márquez.

A senhora afirma isso porque acredita que ele não tem tanto talento ou por sua posição favorável à Revolução cubana? A senhora não nega seu talento de escritor, ou nega?
Yoani Sánchez - É minha opinião, mas não direi que ele obteve o prêmio por esse motivo nem vou acusá-lo de ser um agente do governo sueco.

A reportagem de “Bravo!” cita outras personalidades que sempre apoiaram Fidel Castro e a Revolução Cubana, como o escritor português José Saramago e o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. O texto tenta transmitir certa incredulidade, tentando explicar como é possível que gênios da arte sejam capazes de admirar certos regimes políticos e seus líderes. “Gabo, Saramago e tantos outros seguidores de Fidel não passaram a adorar Cuba por medo da repressão ou com vista ao enriquecimento pessoal. Eles realmente acreditavam — e muitos ainda acreditam — que a revolução na ilha foi um exemplo para a humanidade”, diz a matéria.

A blogueira-celebridade cubana, de modo ainda mais tosco, prefere pura e simplesmente não ver relevância em obras como “Cem anos de solidão”, “O amor nos tempos do cólera” e “Crônica de uma morte anunciada”. Tanto ela quanto “Bravo!”, assim como outras publicações da Editora Abril e certos blogs reacionários, insistem no erro crasso de minimizar a qualidade intelectual e artística de nomes consagrados pelo mero fato de discordarem de suas posições políticas.

Reinaldo Azevedo e Chico Buarque

É cínica a forma como a mídia brasileira abre espaço ou decide ignorar o que certos artistas têm a dizer, conforme sua ideologia ou os políticos que eles apóiam. Caetano Veloso, quando faz alguma crítica ao presidente Lula, é alçado à capa dos jornais e portais da chamada “grande imprensa”. Chico Buarque, ao contrário, é persona non grata em inúmeras publicações por declarar voto em Lula em todas as suas cinco candidaturas e, assim como García Márquez e Niemeyer, apoiar a Revolução Cubana.

“Chico Buarque é o principal pensador da esquerda brasileira. O que é de gargalhar e dá uma idéia da miséria a que chegou a dita-cuja”, escreveu certa vez Reinaldo Azevedo, não por acaso uma das principais vozes de “Veja” há alguns anos. Em mais de uma ocasião, o jornalista tentou argumentar que não analisa a obra literária e musical de Chico por suas posições políticas — algo que talvez engane a seis ou sete de seus bajuladores.

“Acho que ele tem letras líricas até razoáveis, com certo domínio do verso. Suas composições políticas, como quase toda arte engajada, são um lixo”. [...] “Os jornais se rasgam em elogios e lhe concedem espaços generosíssimos, como se um intérprete singular do Brasil estivesse falando”. [...] “Com o tempo, Chico, como todos nós, foi ficando velho. E ficou precocemente gagá”. Em tempo: o texto de Reinaldo Azevedo de onde os trechos acima foram retirados tem como título “A delinquência intelectual de Chico Buarque”. A sensatez, como sempre, está ao lado do grande articulista de “Veja”...

Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa

As publicações conservadoras têm todo o direito democrático de escrever as baboseiras que quiserem sobre o novo livro de García Márquez, o disco mais recente de Chico Buarque ou de quaisquer obras de outras personalidades progressistas. Historicamente, parte da esquerda também tem o mau hábito de defenestrar artistas e intelectuais talentosos que se mantêm ou se mantiveram politicamente neutros ou por assumirem um posicionamento mais à direita.

No entanto, como negar o valor do legado deixado por Nelson Rodrigues? Elia Kazan foi um mau diretor de cinema por ter agido em prol do macarthismo? Pelo lado dos conservadores, por que atacar todo e qualquer lançamento de Saramago? Os dois extremos, ao agirem dessa forma, caem em descrédito e reproduzem, com quase dois séculos de atraso, o jornalismo provinciano descrito por Balzac em “As Ilusões Perdidas”.

A internet dá cada vez mais mostras de que esse tipo de ranço não gera boas críticas culturais e tampouco grandes análises conjunturais. Os comentários publicados nos blogs pela internet afora sinalizam que o internauta quer conhecer os méritos e limitações de uma obra de arte, e não as inclinações ideológicas e políticas de seus autores. Quem não perceber isso logo, conseguirá a façanha de afastar tanto o leitor interessado em arte como aquele (cada vez mais raro) que realmente se interessa por política.

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