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O pastor alemão da minha rua

Hoje ao sair de casa vi um menino que visivelmente estava com medo de um cachorro que anda solto pela vizinhança. Ato contínuo, me vi no rapaz, como numa viagem pelo tempo, rumo a uns 17 ou 18 anos atrás.

Até uns 14 anos de idade, quase tudo que eu fazia me obrigava a passar a pé por uma das três ruas que cercavam minha casa, seja pra ir à escola, jogar bola ou dar um pulo na casa de algum amigo: a primeira opção era uma senhora subidona, a da rua Dias Vieira, caminho que eu preguiçosamente rejeitava; a segunda era uma subida mais moderada e curta, na minha própria rua; a terceira era a opção mais longa (outra subida), pela qual eu via o movimento da rua principal da Vila Sônia, a Silvio Dante Bertachi.

Pois bem: nos dois caminhos favoritos em geral eu me deparava com cachorros. Na subida da minha rua, o vira-lata era até merecedor de respeito: um pastor alemão que vivia solto em um quintalzão sem grades, dono de um focinho apurado, que devia captar a quilômetros a aproximação de moleques medrosos.

Conforme a relação com o pastor alemão foi ficando mais tensa, comecei a fazer o caminho da subida mais moderada. Pra ir, nunca havia nenhum problema; pra voltar, um belo dia apareceu um velhinho maldito, que ficava atiçando dois cachorros pra cima dos moleques que passavam por ali. Nenhum dos pulguentos era grande... mas eram dois! Logo, vi que a terceira opção começaria a ser minha preferida.

No entanto, depois de uns dois dias indo e voltando pela Dias Vieira (além de íngrime, a subida era toda torta, com calçadas cheias de obstáculos), resolvi que eu já era grandinho o bastante pra enfrentar os cachorros. Não deu outra: nas primeiras semanas provei pra mim mesmo que o ser humano é superior: corri mais do que qualquer um dos dogs em várias ocasioes, demonstrando todo meu vigor físico e agilidade.

Depois de certo tempo, eu já havia me acostumado àquela rotina. Ao passar por algum daqueles cachorros eu vinha andando devagar. Assim que algum deles me enxergava eu não pensava duas vezes e iniciava um pequeno trote. À primeira aproximação o trote virava um sprint de respeito, sempre finalizado ao chegar no quarteirão da minha casa - área onde os bichos não chegavam, talvez por respeitar os pulguentos que dominavam aquele pedaço.

Até que um dia tudo mudou – ou quase tudo, pois cachorros que latem acima de 50 decibeis ainda me incomodam. Estava eu indo sei-la-aonde quando vi do outro lado da rua três meninas da escola. É impressionante como nessas horas os meninos tiram coragem sabe-se lá de qual bolso. Ao invés de me preparar pra correr do velho e dos dois cachorros barulhentos, respirei fundo e, tal qual como um Bruce Lee com algumas espinhas, pensei: "Podem vir, miseráveis".

Eles vieram. Finalmente me dei conta que meu pé era muito maior do que um dos cães. Foi a primeira e única vez que chutei com raiva algo vivo. Sem saber do histórico de semanas de humilhação por que passei, as meninas me xingaram e virei uma espécie de torturador canino.

Passador alguns dias, o pastor alemão da minha rua simplesmente sumiu. Lembro que por duas ou três vezes cheguei até a esticar o pescoço pra tentar vê-lo dentro do quintalzão, mas nunca mais o vi. Sem ressentimentos.

O menino de hoje cedo não acertou focinho algum e também não correu pra nenhum lugar - apenas ficou do outro lado da rua, esperando o melhor momento pra chegar à outra calçada. Talvez algum dia suas colegas de escola o façam tomar alguma atitude estúpida, talvez não. Talvez um dia ele goste de cachorros, talvez não. Mas o quanto antes o rapaz resolver isso consigo mesmo, melhor será pra ele.

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