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Eleições nos EUA

Eu ainda vou entender pra cacete sobre a história, a política e dos Estados Unidos. Como isso vai demorar um bocado, o jeito é tentar ler o que é publicado de bom sobre a terra do Tio Sam. Em ano de eleições por lá, a melhor leitura em português nos últimos meses é a do blog do Argemiro Ferreira.

O artigo que reproduzo de seu blog é sobre o sistema eleitoral do país. A partir dele dá pra ter uma noção do viés crítico adotado pelo jornalista.

Colégio eleitoral: obsoleto antidemocrático

No primeiro discurso como um duvidoso "presidente eleito" — em dezembro de 2000, depois que a Suprema Corte mandou parar a recontagem de votos da Flórida e fez prevalecer aquele resultado suspeito proclamado antes pela secretária de Estado Katherine Harris — George W. Bush tentou fazer um paralelo entre a situação que então vivia, à sombra da ilegitimidade, e o resultado da eleição presidencial de 1800, que deu a vitória a Thomas Jefferson (1743-1826) sobre Aaron Burr (1756-1836).

Com isso sugeria que também Jefferson, intelectual, estadista e 3º presidente dos EUA, fora empossado sob suspeita, tornando-se depois um grande presidente. Na verdade, nada havia na eleição que pudesse justificar tal comparação — ou, ao menos, nada além do potencial destrutivo da rivalidade entre os federalistas de Alexander Hamilton e os democratas-republicanos de Jefferson.

A mecânica do processo eleitoral, previsto na Constituição já era então uma receita de crise. Houve empate nos votos do Colégio Eleitoral e a decisão, transferida para a Câmara, só deu a Casa Branca a Jefferson depois de uma semana de impasse e incerteza, 36 escrutínios, 19 empates e, afinal, a abstenção de dois estados. Mas Jefferson, ao contrário de Bush, além de ser um estadista tinha vencido também na votação popular.

Contraste entre dois presidentes

Apesar de outros republicanos bushistas terem feito antes o mesmo paralelo, em claro esforço para aproximar a imagem de um Bush insignificante à de um dos pais fundadores da república (que fora antes secretário de Estado e vice-presidente), os críticos do suposto presidente eleito preferiam compará-lo em 2000 aos três que, como ele, viraram presidente sem vencer a votação popular no país.

Jefferson, afinal, era um pensador e líder no Congresso Continental, além de autor da Declaracão da Independência em 1776, governador da Virgínia e embaixador na França. Só perdera a presidência para John Adams, quatro anos antes, por três votos no Colégio Eleitoral — tornando-se vice, conforme outra regra equivocada da época, que destinava o cargo número dois ao segundo mais votado.

Os acanhados dotes intelectuais de Bush — cuja experiência antes do governo do Texas limitara-se a negócios duvidosos (e fracassados) na área de petróleo, além da propriedade, com sócios amigos do pai, de um clube de beisebol — nada tinha a ver com a biografia de Jefferson. Como Ronald Reagan, seu ídolo, Bush abominava leitura séria (à espera da decisão da Flórida, disse estar lendo a biografia de um jogador de baseball).

Os federalistas e os republicanos

Deixo para depois paralelos possíveis entre a eleição de 2000 e as de John Quincy Adams (1825-29), Rutherford B. Hayes (1877-81) e Benjamin Harrison (1889-93), que também perderam a votação popular e ganharam a presidência no Colégio Eleitoral. A relevância de 1800 é principalmente por ter sido a primeira transferência pacífica — do federalista John Adams para o republicano Jefferson.

Alguns destacam que isso ocorreu apesar do colapso do sistema eleitoral. Simpático à Revolução Francesa, Jefferson era alvo de acusações sórdidas, por defender relações mais fortes com a França (outros apegavam-se mais à herança anglófila) e intepretação rigorosa da Constituição, limitando o poder federal. Hamilton discordou dele sobre a jurisdição federal e a França.

Jefferson fora vice de Adams (outro federalista), de 1797 a 1801, apenas porque se opusera a ele na eleição de 1796, ano do confronto radical republicanos-federalistas. Já a crise de 1800 resultou de conchavos e espertezas no Colégio Eleitoral. Para dividir os republicanos, Hamilton foi ambíguo sobre Aaron Burr. Depois do empate no Colégio (73 votos) e do impasse, Jefferson venceu na Câmara. Burr tornou-se vice e anos depois, ressentido, mataria Hamilton em duelo.

A sobrevivência do Colégio parece até tributo a uma persistente falta de confiança no eleitor comum. Pois na reforma sofrida pelo processo eleitoral em 1804, com a 12ª Emenda à Constituição, eliminou-se um problema real, ao se estabelecer votos separados para o presidente e o vice, e ficou decidido ainda que em caso de empate caberia à Câmara escolher o presidente e ao Senado, o vice-presidente. Só que era pouco.

A insuficiência daqueles remendos

Sobreviveram complicadores, com falhas potencialmente perigosas no sistema. A maior é a possibilidade de discrepância entre o resultado da votação popular e o do colégio — como ocorreu em 1824, 1876, 1888 e 2000. É inacreditável que um legado histórico equivocado, que só se explicaria por razões práticas como a dimensão do país, a deficiência de transporte e a dificuldade de comunicação, ainda prevaleça na era do jato, da Internet e do telefone celular.

Podia-se entender a desconfiança do julgamento popular por parte da elite de sábios e iluminados (que de fato existiram e fizeram diferença). Mas hoje a instituição é apenas obsoleta e antidemocrática, até pela falta de critério na escolha, pelos partidos, dos membros do Colégio Eleitoral. Igualmente antidemocrático é atribuir ao vencedor num estado todos os votos eleitorais desse estado, ao invés de distribuí-los na proporção de cada um dos votados.

Acho sintomático que os escolhidos pelo Colégio em 1824, 1876 e 1888, sem vitória na votação popular, tenham sido rejeitados quatro anos depois. Bush, uma exceção, sai agora em meio ao caos que seu governo criou, com o mais baixo índice de aprovação já medido para um presidente. É lícito supor que ele só teve mais quatro anos graças ao 11/9 e à histeria patrioteira que conseguiu manipular com o respaldo de uma mídia submissa e atemorizada.

Encerrando a história

Para encerrar nossa discussão sobre o Colégio Eleitoral, é relevante trazer mais informações históricas. Elas permitem que cada um chegue às próprias conclusões - avaliando se a instituição está obsoleta e se, pior ainda, pode até ser acusada de antidemocrática, como foi afirmado no post anterior. Em primeiro lugar, convém esquecer a idéia de uma Constituição dos EUA como algo perfeito.

Ela não é e nem poderia ser perfeita - tanto que, no desdobramento, teve de receber muitas correções relevantes, na forma de emendas constitucionais. E mais: o texto original resultou de confrontos, negociações e compromisso. Por exemplo, havia 3,8 milhões de pessoas no país e 18% delas (700 mil) eram escravos. Só não havia escravos em Massachusetts, Vermont e Maine.
Na Carolina do Norte, 43% eram escravos. Na Virgínia, os escravos eram ainda mais numerosos, embora a percentagem deles na população fosse um pouco menor, 39%. Se Massachusetts insistisse no fim da escravidão, talvez não houvesse Constituição. O texto referia-se aos escravos como "outras pessoas". Até previa a devolução aos estados de origem daqueles escravos que fugissem em busca da liberdade.

Escravos e direitos dos estados

O Colégio Eleitoral nasceu com a Constituição mas não tinha esse ou qualquer outro nome. O artigo 2, seção 1, descrevia o processo: cada estado escolhe eleitores em número igual ao de seus deputados e senadores. Cada eleitor votava em dois candidatos — e pelo menos um dos votados tinha de ser de outro estado. Quem recebesse maior número de votos seria presidente; o segundo, vice-presidente.

A preocupação central era em torno dos direitos dos estados (temia-se que os maiores impussem sua vontade aos menores). Continuou a ser assim nos anos seguintes (para o sul racista, teria sido essa a causa real da guerra civil na década de 1860). O impasse na eleição de 1800, com o empate de votos eleitorais entre Thomas Jefferson e Aaron Burr, acabou por detonar o processo eleitoral imaginado inicialmente, forçando a 12ª Emenda, mas isso não neutralizou os complicadores.

Eles reapareceram em 1824, 1876, 1888 e 2000. A exceção de George W. Bush, os outros que se tornaram presidentes nesses anos, a começar por John Quincy Adams (1825-29), não tiveram novo mandato. Quincy Adams (veja acima) é especialmente sugestivo: foi o único caso, além de Bush, em que o filho de um presidente também se tornou presidente (John Adams, pai, fora o 2º presidente, 1797-1801).

Na eleição de 1824 Andrew Jackson teve mais votos populares (152.901, 42,34%) do que Quincy Adams (114.023, 31,57%). Jackson teve mais votos também no Colégio Eleitoral (99, contra 84 de Adams), mas nenhum obteve maioria absoluta e a disputa foi para a Câmara — cujo presidente, Henry Clay, fez conchavo com Adams, em troca do cargo de secretário de Estado.

A segregação racial prorrogada

Adams ficou tão marcado como beneficiário de uma eleição ilegítima que quatro anos depois sofreu derrota esmagadora frente ao mesmo Jackson — tanto na votação popular do país (647.292, 56%, contra 507.730, 44%) como no próprio Colégio Eleitoral, que em 1828 consagrou a escolha de Jackson, reeleito ainda para o segundo mandato (em 1832, contra Clay).

Rutherford B. Hayes (1877-81) foi o segundo na história a se tornar presidente sem ganhar a votação popular. Em 1876 esse republicano de Ohio (veja ao lado) teve 48% dos votos (4.036.572) e seu rival democrata Samuel J. Tilden, de Nova York, 51% (4.284.020). No Colégio Eleitoral, vieram resultados duplos de três estados do sul (Carolina do Sul, Flórida e Lousiana) — um a favor de cada partido.

Tilden só precisava de mais um dos 20 votos eleitorais (dos três estados) em disputa, Hayes precisava de todos. O Congresso resolveu confiar a solução do impasse a uma comissão de 15 membros (10 parlamentares e cinco juízes da Suprema Corte). Em teoria, a comissão era apartidária, mas na verdade tinha oito republicanos e um democrata — e apontou Hayes.

Apesar da rejeição do resultado pela Câmara dos Deputados, Hayes foi confirmado no Senado. Prevaleceu graças ao contexto da época. Em troca de sua concordância, o Sul derrotado na Guerra Civil, até então sob o regime da chamada Reconstrução, obteve o fim da "ocupação" nortista. E os democratas voltaram ao poder ali, impondo mais um século de segregação racial.

O fantasma da ilegitimidade

Ao fim de quatro anos, certo de que não se reelegeria, Hayes sequer candidatou-se a novo mandato. Doze anos depois, em 1888, outro republicano, Benjamin Harrison, tornou-se o terceiro a virar presidente (1889-93) sem ganhar a votação popular no país. Obteve 5.444.337 votos contra 5.540.050 dados ao presidente democrata Grover Cleveland. Ganhou só no Colégio Eleitoral, por 233 contra 168.

Como nos exemplos anteriores, não houve reeleição. Harrison tentou um segundo mandato em 1892, mas estava tão impopular ao fim do primeiro que não escapou da revanche do ex-presidente Cleveland, que ganhou por maioria esmagadora, tanto na votação popular (5.554.414 contra 5.190.801) como no Colégio Eleitoral (277 contra 145). De novo o fantasma da ilegitimidade.

O confronto Bush-Gore ocorreu mais de um século (111 anos) depois da eleição de Harrison. Na votação popular Bush perdeu por mais de meio milhão de votos: Gore, 50.999.897, 48,38%; Bush, 50.456.002, 47,87%. Tornou-se o 43º presidente porque a Suprema Corte validou a contagem duvidosa da Flórida, governada por seu irmão Jeb, que deu a ele 537 votos populares mais. Isso permitiu somar a favor de Bush todos os 25 votos da Flórida no Colégio Eleitoral, totalizando nacionalmente 271 — contra 266 do rival Gore. O resultado serviu para escancarar a inconveniência, para dizer o mínimo, da manutenção de um processo eleitoral obsoleto e antidemocrático. Além disso, levou a decisão, pela primeira vez na história, para o tapetão judicial.

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