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A classe média e os pobres

Grande parte texto do Marcelo Coelho na Folha de hoje tem a ver com o espírito aqui do "Já reparou?". Ele fala de um fenômeno típico da classe média brasileira que precisa ser reparado (nos dois sentidos do verbo) imediatamente: a ojeriza de manter contato com a pobreza.

Infelizmente tenho percebido esse tipo de sentimento até mesmo com gente bem próxima, que nem tão distante da pobreza está. Típico caso de "comer mortadela e arrotar peru". É a velha história: a sociedade brasileira ainda tem muitos traços de racismo, mas seu principal – e odioso – problema é o preconceito social.

Segue abaixo o texto:

Cultura da explicação

Fico tentando entender o que leva um grupo de delinqüentes de classe média a espancar, tarde da noite, uma mulher parada num ponto de ônibus, como aconteceu há poucos dias no Rio de Janeiro. Parece que faziam isso habitualmente; funcionários de um posto de gasolina contam tê-los visto mais de uma vez comemorando o sucesso de suas expedições.Fala-se em "intolerância": organizavam-se para atacar prostitutas. Só que desta vez atingiram uma empregada doméstica. Se o caso fosse "apenas" isso, uma mania de perseguir prostitutas, haveria sem dúvida uma linha de interpretação possível. Acho-a insuficiente, mas vamos ver até onde vai.

Tudo poderia ser entendido como uma forma doentia de repressão sexual. Imagino que, há um século, certos assassinos famosos de prostitutas buscassem matar quem expusesse em público um desejo sexual de que tinham vergonha e que não conseguiam satisfazer.

Ainda que evidentemente genérica, essa interpretação teria algum sentido em épocas remotas. Não tenho certeza se atualmente se vive uma era de total liberdade sexual entre os jovens, mas em todo caso a repressão não é, por certo, o forte do nosso sistema educativo.

Mais provável, então, que a "intolerância" seja de outra natureza. O que a classe média brasileira não mais suporta -haja vista as iniciativas de controlar a mendicância em São Paulo- é o contato com gente pobre. Você mora num condomínio bem-cuidado, freqüenta um colégio particular, passeia num shopping center, e tudo vai às mil maravilhas.

Só que existe a rua, o trânsito, o sinal vermelho, e quando você olha para o lado lá estão eles. À noite, parada na rua, uma mulher pode ser prostituta, mas pode estar apenas esperando um ônibus. Pouco importa: não é "tudo a mesma coisa"? Havia uma comunidade no orkut (devem ser contadas às centenas, mas não tenho estômago para procurar) chamada "Odeio pobre". O idealizador dessa pequena organização dava seus motivos: eles falam alto, o carro deles, no fim de semana, encrenca na estrada e atrapalha a nossa vida, eles se vestem mal, usam aqueles guarda-chuvas que não funcionam, não entendem o que a gente diz...

Uma vez que não há perspectivas de ver o Brasil tornar-se um "país de primeiro mundo" pelos mecanismos normais do desenvolvimento econômico, começam a surgir sinais de fantasia genocida. A "limpeza" não se limitaria à remoção de favelas ou de bancos habitáveis nas praças públicas, mas precisa recorrer a medidas radicais, como incendiar mendigos ou, no mínimo, espancar quem não tiver a roupa certa, a cor certa, o carro certo.

"Intolerância"? Não acho que seja este o termo. A questão não se resume, evidentemente, a "tolerar" os pobres (embora seja isso o que muita gente acaba defendendo). Já é sintoma de nossa patologia social falar no "respeito ao diferente" quando se pensa em proteger quem faz parte da maioria da população. Bem, mas eles pensavam que estavam atacando prostitutas. O motivo dessa escolha, entretanto, é certamente mais odioso do que o da pura "intolerância" com relação à atividade dessas mulheres. É que a prostituta não vai dar queixa na polícia.

Seja como for, o ódio aos pobres não leva tanta gente assim a cometer a barbaridade que se viu na Barra da Tijuca. Será que esses "meninos", esses "garotos", esses "adolescentes" (quanta ilusão nessas palavras!) tiveram uma educação excessivamente liberal? Acostumaram-se à "cultura da impunidade" que predomina no país? Pode ser. Mas isso não explica tudo.

Poderiam drogar-se sozinhos, dedicar-se a pichações, depredar caixas eletrônicos na calada da noite. Só que seria pouco. Tentando achar uma explicação para o caso, concluo que o erro está na minha própria pergunta. Fala-se muito na "cultura da impunidade", mas existe também uma "cultura da explicação". Para cada absurdo que acontece, há sempre um repórter pedindo explicações a algum especialista.

Entrevistar os próprios delinqüentes não daria certo tampouco: ouviríamos aquele tipo de adolescentês desarticulado que se encontra em toda parte. Foi pra zoar, mó legal, foi só de sarro, sei lá, tá ligado? De tanto serem "explicados", de tanto que as pessoas se esforçam por entendê-los, é que nossos "jovens" acabam fazendo essas e outras proezas. Querem ser inexplicáveis; querem ser irracionais. Trata-se de um desejo bastante comum, aliás, na espécie humana.

Comentários

Unknown disse…
Os outros são os outros, e só?

Quanta pobreza de espírito não perceber o outro como igual!
É impossível supor quaisquer êxitos nos campos social, político e econômico, sem o alicerce de um povo que se educa para humanizar-se.

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