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Alemanha, Bismarck, indústria e Primeira Guerra

O fortalecimento da economia alemã na segunda metade do século 19 e suas consequências para o restante da Europa

É impossível afirmar que um evento com a magnitude da Primeira Guerra Mundial tenha ocorrido por conta de um fenômeno isolado – são vários os elementos envolvidos. No entanto, para muitos historiadores e analistas, o papel geopolítico desempenhado pela Alemanha no final do século 19 foi um fator preponderante para o início do conflito.

Este trabalho pretende analisar, pelo viés do desenvolvimento econômico da Alemanha, de que maneira um país unificado somente em 1871 pôde se transformar, em pouco mais de quatro décadas, em uma nação de primeira grandeza – a ponto de ser um dos protagonistas da Primeira Guerra. Que elementos – externos e internos – contribuíram para essa ascensão? Até que ponto é correto responsabilizar os alemães pelo estopim do conflito que viria a tirar as vidas de 19 milhões de pessoas?

De 1789 a 1848 – anos cercados por revoluções

Uma geração inteira, tanto na França quanto nos estados germânicos, cresceu sob o impacto direto das consequências da Revolução Francesa[1], iniciada em 1789, passando pela ascensão de Napoleão e os conflitos ocorridos até a queda do Imperador francês, em 1815. Desde essa época a disputa pelas regiões de Alsácia e Lorena já permeava o xadrez geopolítico europeu.

Naqueles idos, o que viria a ser o Estado alemão era um amontoado de principados, ducados e cidades livres, caracterizados pela ausência de qualquer senso de unidade administrativa. Sua situação contrastava com os interesses políticos de franceses e ingleses, que logo após o período napoleônico tratavam de edificar as estruturas de suas unificações políticas.

Até 1871, ano de unificação da Alemanha, somente a Inglaterra apresentava uma nítida aposta em seu desenvolvimento industrial – política que a colocava anos-luz à frente de outras nações europeias. No entanto, ao contrário da visão muitas vezes apresentada pelos livros didáticos, os povos germânicos estavam muito longe de qualquer situação de penúria ou pobreza. Para muitos de seus líderes, os britânicos, mais do que rivais, eram inspiradores para um modelo de sociedade a ser copiado[2].

As reformas iniciais no caminho para a unificação começaram a ser discutidas mais profundamente logo após a queda de Napoleão. A principal política do período foi o chamado Zollverein, uma aliança aduaneira que teve como princípio a liberdade alfandegária para os 39 estados que comporiam a Alemanha.

Essa união aduaneira, consolidada em 1871, com a unificação da Alemanha, viria a se mostrar como a principal política para o desenvolvimento da jovem nação no final do século 19. Uma política que garantiu tranquilidade interna e uma grande rigidez nas fronteiras com outros países.[3]

Grande parte dessa sacada política se deu por influência dos estudos de Friedrich List, ainda no começo do século 19. À época, a teoria econômica sobre livre-comércio de Adam Smith dizia que cada país tinha seu destino atrelado a características que a natureza havia lhe propiciado. Assim, nações como a Polônia e os Estados Unidos, por exemplo, estariam eternamente ligados à agricultura. List se posicionou frontalmente contra essa ideologia.

Nos estados que formariam a Alemanha ainda naquele século, os estudos de List – e seu estilo contundente – foram decisivos para a criação da união aduaneira que caracterizou a formação do novo país. Seus trabalhos recusavam o determinismo geográfico e se baseavam em experiências históricas[4] que seriam a base de uma nova economia política.

O “pulo do gato” de List foi perceber que os princípios de livre-comércio de Adam Smith só funcionavam bem caso todas as nações observassem entre si os mesmos princípios, em igualdade plena de condições. Dessa forma, o referido livre-comércio entre duas nações civilizadas só poderia ser benéfico se ambas estivessem no mesmo patamar de desenvolvimento.

Ao passo em que a chamada Confederação Germânica ajustava sua burocracia, a partir da década de 1830 a opinião pública europeia se radicalizou, com destaque para a situação francesa. O ideário burguês, o fortalecimento do capitalismo e as ideias iluministas ganharam força em diversas nações. O estopim desses movimentos veio a ocorrer entre os anos de 1848-49, com diversas rebeliões por todo o continente.

No entanto, na futura Alemanha a burguesia ascendente se mostrou temerosa pelo que se viu nas ruas[5]. Ao contrário de ingleses e franceses, os germânicos nem aprofundaram seu poder e tampouco se consolidaram como classe social dominante. Sua opção foi aliar-se novamente à nobreza e apostar na crescente industrialização.

A era do progresso – 1850-80

Em 1850, os estados alemães eram uma economia predominantemente rural. Em 1870, já eram mais industrializados do que a França. No final do século 19, até mesmo a poderosa Inglaterra havia ficado para trás[6]. Em nível mundial, em 1914 a Alemanha era a segunda maior exportadora do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos[7].

Ainda nos anos 1840s, a Confederação começou a investir pesadamente nas áreas de transportes e comunicações, tornando-as os nichos mais dinâmicos de sua economia. Os investimentos feitos pelo Estado entre os anos de 1850-80 foram quatro vezes maiores do que no período entre 1820-50.[8] Ainda assim, em 1871, do total de 41 milhões de pessoas que compunham os estados germânicos, 64% ainda viviam no campo[9].

Nesse cenário, destaca-se o papel fundamental do Estado como indutor[10] do desenvolvimento e do modelo de capitalismo escolhido por suas elites. Um grande exemplo de sua ação pôde ser visto no setor de transporte ferroviário, nacionalizado ainda na primeira metade do século 19.

Alguns dados levantados por Stolper comprovam a evolução da indústria alemã e sua influência sobre a população do país:

Sistema ferroviário: 18 mil km em 1970 / 60 mil km em 1912

Frota mercante: 147 barcos em 1871 / 2098 em 1913

Indústria de maquinaria: 51 mil funcionários em 1871 / 1,1 milhão em 1907

Blackbourn, por sua vez, cita o exemplo do industrial do aço Alfred Krupp, dono de uma empresa que levava o sobrenome da família. Em 1836, seu pai possuía 60 empregados; em 1858, o número já chegava a mil; em 1865, oito mil; e em 1873 já havia cerca de 16 mil funcionários envolvidos na produção de um dos elementos-chave do desenvolvimento de qualquer país.

Tempos de “Made in Germany”

Em um período de 20 anos, entre 1870 e 1890, os produtos que saíam do país com o carimbo “made in germany” deixaram de ser vistos como porcaria e passaram a ser sinônimo de alta qualidade[11]. Essa evolução acabou por gerar uma nova ordem econômica na Europa, cujo domínio industrial da Inglaterra, após quase um século, era finalmente colocado diante de um rival respeitável.

Aos poucos, o acordo de equilíbrio de poder vigente desde o Congresso de Viena, em 1815, começa a criar uma nova faceta, pelo surgimento de um novo ator-chave. Nesse contexto, a figura de Otto von Bismarck é de fundamental importância.

Bismarck foi o primeiro-ministro da Prússia entre 1862-90 e é considerado como o principal articulador da unificação alemã. Foi também o chanceler do novo país entre 1871-90. Sua política foi pautada pelo nacionalismo e pelo militarismo, além do dirigismo estatal e o incentivo à industrialização do país, em conformidade a um dos principais interesses da ascendente burguesia.

Em termos de geopolítica, a disposição de Bismarck para a participação em conflitos acabou por determinar tanto o sucesso – em curto prazo – quanto a derrota alemã – a longo prazo. Entre 1864 e 1871, a Prússia guerreou, com sucesso, contra Dinamarca, Áustria e França. Para Blackbourn, a unificação da Alemanha “é resultado direto” das três guerras “que criaram um novo poder no centro da Europa”[12].

As três guerras vieram à tona poucos anos depois da Guerra da Crimeia (1854-56), conflito que envolveu diretamente diversas forças europeias. Desde seu término, o sistema de equilíbrio de forças vigente desde 1815, dividido entre Rússia, Inglaterra, França, Áustria e Prússia, perdeu completamente a razão de ser. A unificação da Alemanha se dá nesse vácuo de poder.

Conclusão

Como as demais grandes nações, além da Prússia, permitiram que um novo ator, com tamanho potencial, emergisse no continente ao final do século 19? Não existe UMA resposta, mas uma série de fatos que contribuem para a melhor compreensão desse importante período histórico.

A Rússia foi humilhada na Guerra da Crimeia; a Prússia havia investido fortemente em suas forças militares e, ao bater a França, humilhou o país ao tomar-lhe de volta as regiões de Alsácia e Lorena e exigir pesadas indenizações, além de cometer a afronta de celebrar em território francês (em pleno Palácio de Versalhes) o estabelecimento do Império Alemão. Para Kennan, Bismarck errou ao permitir que os militares saciassem todo seu apetite contra os franceses[13]. A fatura viria no futuro.

A unificação alemã se dá também em um período de definições semelhantes ao redor do planeta. Nos Estados Unidos, a Guerra de Secessão (1861-65) pôs fim a qualquer tentativa de divisão territorial; no Japão, a década de 1860 foi marcada pela chamada Restauração Meiji; na Europa, nessa mesma fase a Itália deu passos largos no caminho para sua unificação. A ideia de construção de estados nacionais fortes caminhava para o final do século como vitoriosa.

Parte dessa política vitoriosa também se formava a partir do que autores como Lênin definiam como “imperialismo”. Nesse ponto, a Alemanha não esteve sequer próxima do poderio inglês, apesar de toda sua pujança. Ao final do século 19, as poucas colônias alemãs eram desprovidas de maior relevância econômica. Ao contrário de Inglaterra e França, os alemães obtiveram sucesso apenas na penetração econômica, mas sem controle ou anexação política.

A combinação entre o enorme e recente potencial industrial da Alemanha (somado ao seu poderio militar), sem a devida contrapartida colonial para escoar sua produção trouxe grande tensão para o continente. A partilha da África, na virada para os anos 1900, ainda obedecia a uma correlação de forças feitas por um clube do qual a Alemanha não fazia parte.

Ao longo de toda a primeira década do século 20, diversas lideranças viam um novo conflito como algo inevitável em médio prazo. O assassinato do arquiduque da Áustria, Francisco Ferdinando, acabou por ser tão-somente o estopim para que cada país se agrupasse em algum dos lados da Guerra. Era a hora de a França cobrar as recentes humilhações; para a Inglaterra, fazia-se necessário pôr um freio nos anseios imperiais alemães.

Para Stolper, é possível dizer que nenhuma outra nação, além da Alemanha, experimentou tão profundos altos e baixos em tão pouco tempo[14]. Afinal, entre seu auge, na virada do século 19 para o 20, e o final da Primeira Guerra Mundial, sequer uma geração foi completada. Stolper diz ainda que a partir de sua unificação, o povo alemão “gozou de uma prosperidade, de uma expansão econômica e de um poder político sem paralelo”. Algo parecido com isso só seria visto novamente em território alemão no final do século 20, bem depois de Hitler e do nazismo.

Bibliografia

BLACKBOURN, David. History of Germany – 1780-1914. Blackwell Publishing: Oxford, 2003.

KENNAN, George Frost. O declínio da ordem européia de Bismarck. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1979.

LIST, Friedrich. Sistema Nacional de Economia Política. Abril Cultural: São Paulo, 1983.

STOLPER, Gustav. História Económica de Alemania (de 1870 a 1940): Fondo de Cultura Econômica: Panuo, 1963.

[1] BLACKBOURUN, 2003.

[2] STOLPER, 1963.

[3] STOLPER, 1963.

[4] LIST, 1983.

[5] KENNAN, 1979.

[6] KENNAN, 1979.

[7] STOLPER, 1963.

[8] BLACKBOURN, 2003.

[9] STOLPER, 1963.

[10] STOLPER, 1963.

[11] BLACKBOURN, 2003.

[12] BLACKBOURN, 2003.

[13] KENNAN, 1979.

[14] STOLPER, 1963.

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