Pular para o conteúdo principal

Alegoria cantada

O ano de 1905 na Rússia não foi dos mais pacatos. Para muitos historiadores, a data marca o início do processo que culminaria na Revolução de 1917. De qualquer forma, é indiscutível afirmar que o país vivia uma grande crise política, com protestos por toda a parte e grande descontentamento em relação ao czar Nicolau II.

É também em 1905 que transcorre a história fictícia de “O violonista no telhado”, bonita história já registrada em filme de sucesso e também em um histórico musical da Broadway, baseada em contos de Shalom Aleichem e atualmente em cartaz em São Paulo. A trama se passa na fictícia Anatevka, onde convivem as comunidades judaica e cristã ortodoxa, de acordo com as tradições estabelecidas há séculos na região.

No musical em cartaz, cabe a José Mayer, o maior comedor da teledramaturgia nacional, o papel do leiteiro judeu chamado Tevye, protagonista de toda a história. O ator canta (sem grandes estripulias e com certa dignidade) e se sai muito bem nos momentos cômicos e dramáticos exigidos pelo personagem, às voltas com os arranjos casamenteiros de três de suas cinco filhas.

Maiores detalhes da história são desnecessários, para evitar a fadiga e qualquer spoiler (a peça ainda fica um bom tempo em cartaz; o filme, de 1971, é encontrado nas boas locadoras). Ao longo de suas mais de duras horas, aparecem, de forma discreta, críticas pontuais e contundentes ao regime política da época, de forma a demonstrar que boa parte da população não via no czar a autoridade necessária para comandar uma nação. Contundência maior recai sobre a situação vivida pelos judeus em toda a Rússia na transição do século 19 para o 20. Nesse sentido, a fictícia Anatevka representa muito bem o antissemitismo sofrido por milhões de cidadãos, alvos preferenciais de um governo em decadência, que os escolheu como bodes expiatórios para justificar seus seguidos insucessos, décadas antes do Holocausto.

Pitadas de história à parte, “Um violonista do telhado” se destaca também por uma produção de extremo bom gosto, com cenários que ajudam a compor, com maestria, as sensações transmitidas pelos números musicais, sejam os mais leves ou aqueles mais carregados de conteúdo dramático. No total, são 44 atores, que fazem uso de 160 figurinos de época, ao som de uma orquestra de 17 músicos.

No final das contas, o fundo musical que aparece em diversos momentos da peça fica na cabeça por vários dias. Clicando aqui, você pode ter uma leve amostra. Para quem mora em São Paulo, a peça está em cartaz no Teatro Alfa até o dia 15 de julho. Abaixo segue um vídeo com os instantes iniciais da peça, no qual é possível notar o clima do espetáculo.

Comentários

Leitor Ronaldo disse…
Voltando com tudo aos posts, hein?
Muito Bom. Continue assim.
Abraço!

Postagens mais visitadas deste blog

I Was Born Ten Thousand Years Ago

E eis que de repente leio o seguinte parágrafo hoje no ônibus, na biografia de Paulo Coelho escrita por Fernando Morais: “Em dezembro de 1976 a Philips colocou nas ruas o quinto LP de Paulo com Raul, Há Dez Mil Anos Atrás [...]. A canção que dava nome ao álbum tinha duas peculiaridades: uma redundância no título e o fato de ser a tradução adaptada de I Was Born Ten Thousand Years Ago , conhecida canção tradicional americana de domínio público que tinha várias versões, a mais famosa delas gravada por Elvis Presley quatro anos antes”. Foram longos minutos até chegar ao trabalho e procurar no YouTube a versão original da música. E bateu uma certa sensação de ignorância por gostar de ambos (Elvis e Raul) e não saber que a longa letra é uma adaptação/tradução/homenagem. Sem mais delongas, seguem abaixo o vídeo e a letra original, com a ressalva de que há mais de uma versão para I Was Born Ten Thousand Years Ago : I WAS BORN ABOUT TEN THOUSAND YEARS AGO (Traditional - Adapted by Elvis Presl

A grandeza de Nelson Ned

Um belo dia, em um programa de televisão (“Conexão Internacional”, da extinta Rede Manchete), Chico Buarque enviou uma pergunta para Gabriel García Márquez: “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?”. Com elegância e sem vergonha de suas preferências, o escritor colombiano respondeu: “Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned”. Pela terceira vez (haverá ainda um quarto texto), recorro a “Eu não sou cachorro, não”, livro de Paulo César Araújo para relatar causos de nossa cultura popular. Pouco antes da resposta de Gabo a Chico, fico sabendo ainda que o Nobel de Literatura escreveu “Crônica de uma morte anunciada” ao som de canções como “Tudo passará”, do grande pequeno cantor brasileiro, cuja obra em geral é relegada aos rótulos de “cafona” e “brega” de nossa discografia. Nelson Ned é figura

"Vesti azul.... minha sorte então mudou"

A primeira vez que ouvi falar em Wilson Simonal foi no colégio - se não me engano, numa aula da Tia Idair, na quarta série. Por algum motivo, ela havia citado "Meu limão, meu limoeiro" e ninguém da classe sabia do que se tratava. Estupefata, ela cantarolou "... uma vez skindô lelê, outra vez skindô lalá" e tentou fazer algo no estilo que o "rei da pilantragem" costumamava aprontar com suas plateias . E deu certo. Dia desses fui ver "Simonal - Ninguém sabe o duro que eu dei", documentário muito bem feito sobre a carreira do sensacional cantor, com ênfase, claro, na eterna dúvida que o cercou desde os anos 70 até sua morte, em 2000: Simonal foi um dedo-duro dos militares durante a ditadura ou não? Pra quem não sabe do que se trata, um resumo curto e grosso: Simonal competia com Robertão na virada dos 60 para os 70 como o cantor mais popular do Brasil. Um belo dia, seu nome aparece nos jornais como delator de companheiros de profissão, alguém a serv