Reproduzo abaixo texto do jornalista Breno Altman, do site "Opera Mundi", sobre "House", série cuja sexta temporada se encerrou há algumas semanas, de forma arrebatadora, após alguns momentos de baixa ao longo deste ano. Fica a dica também pro site onde o texto está publicado.
“House” esculacha a ditadura da ética
Os fãs respiram aliviados. Novos episódios da série médica mais aclamada do planeta começaram a ser gravados na semana passada. Apesar de especulações sobre descontinuidade, House entrará, a partir de setembro, nos Estados Unidos, em sua sétima temporada. Os brasileiros, porém, terão que aguardar até o primeiro semestre de 2011.
Criado por David Shore e originalmente exibido pela Fox desde 2004, o teledrama estrelado por Hugh Laurie alcançou, em 2008, o topo dos programas mundialmente mais assistidos: 80 milhões de espectadores em 66 países. Além do sucesso de público, acumula premiações e elogios da crítica.
A que se deve, afinal, o sucesso do clínico arrogante e niilista cujo sobrenome intitula esse campeão de audiência? Muitas poderiam ser as respostas: produção cuidadosa e sofisticada, atores refinados e carismáticos, roteiros criativos e bem-humorados. Cada episódio e cena parecem ser tratados com esmero digno de Francis Ford Copolla, talvez o melhor marceneiro da história do cinema.
Também a originalidade da trama poderia ser uma boa explicação para o fenômeno. Ao contrário de algumas séries médicas mais antigas, o enredo não se desenvolve em paralelo ao drama de saúde e à luta por sua cura. O próprio processo de diagnóstico e tratamento se constitui no nervo exposto de House, abordado como suspense típico de romances policiais e inspirado no Sherlock Holmes de Conan Doyle.
Mas não são apenas razões estéticas que dão vigor ao programa. O personagem central, um anti-herói sarcástico e insensível, provoca os espectadores a reagirem sobre a tensão entre ciência e moral. Gregory House fere quase todo o tempo as normas da ética médica, atropelando o que estiver na sua frente para identificar corretamente a doença e eliminá-la como a um inimigo no campo de batalha.
Suas atitudes são uma constante violação de conduta com pacientes e familiares, colegas e superiores. Submete tudo e a todos ao objetivo de sua profissão, mesmo que o preço a pagar seja o desrespeito a quem o cerca e aos portadores do mal que obstinadamente se dedica a abater. Simplesmente porque não pode haver obstáculo moral à ação científica.
House não atua dessa forma por carreirismo ou vantagens materiais, apenas por compromisso com sua causa. Médico consagrado, vive e trabalha como um estóico. Dirige carros velhos ou motocicletas. Mora em apartamentos simples e antigos. Não ostenta riqueza, somente excentricidades. Tampouco admite complacências que contrariem seus princípios, que aos demais se apresenta como estranho código amoral.
Eventualmente porque o personagem encarne o axioma maquiavélico sobre os fins justificarem os meios. Seu olhar sobre regras é utilitário. Como se fossem um pacto de convivência que, muitas vezes, bloqueia ou atrapalha a guerra contra enfermidades. Quando é conveniente para sua ação, as respeita. Mas não teme ultrajá-las sem piedade nos momentos que se colocam como empecilhos.
Comparado a outros heróis de novelas médicas - geralmente bonitos, generosos e amistosos -, o doutor House é refém da misantropia. Ainda que trabalhe em equipe, quase sempre rejeita aproximações pessoais. Seus vínculos são com ideias e resultados, que se sobrepõem a sentimentos e afetividades.
A parábola com a política parece inevitável. Gregory House subordina ética à ciência da mesma forma que a esquerda, por exemplo, é acusada pelos liberais de submeter moral à ideologia. A narrativa da série, pelos passos do protagonista, de fato referenda como hipótese a natureza essencialmente conservadora da moralidade, ainda que seja um indispensável marco civilizatório.
Valores perenes e universais, forjados no passado, estabeleceriam um freio ao desenvolvimento se transformados em ditadura sobre a ação humana e científica. House, que esculacha com esse pressuposto em sua atividade profissional, oferece uma alternativa, às vezes esboçada no final de cada episódio. A moral deve estar subjugada aos objetivos científicos, mas não é o mesmo que descartá-la. Trata-se de reconstruí-la, a cada momento, conforme os interesses concretos da humanidade e seus microcosmos.
E por aqui ficamos. Afinal de contas, House não é uma mesa-redonda sobre filosofia. Basta ser o que é: entretenimento inteligente, de alta qualidade, que faz pensar. Um raio no monótono céu azul do multiculturalismo e do politicamente correto, cujo cardápio de boas maneiras frequentemente anestesia o debate de questões fundamentais.
“House” esculacha a ditadura da ética
Os fãs respiram aliviados. Novos episódios da série médica mais aclamada do planeta começaram a ser gravados na semana passada. Apesar de especulações sobre descontinuidade, House entrará, a partir de setembro, nos Estados Unidos, em sua sétima temporada. Os brasileiros, porém, terão que aguardar até o primeiro semestre de 2011.
Criado por David Shore e originalmente exibido pela Fox desde 2004, o teledrama estrelado por Hugh Laurie alcançou, em 2008, o topo dos programas mundialmente mais assistidos: 80 milhões de espectadores em 66 países. Além do sucesso de público, acumula premiações e elogios da crítica.
A que se deve, afinal, o sucesso do clínico arrogante e niilista cujo sobrenome intitula esse campeão de audiência? Muitas poderiam ser as respostas: produção cuidadosa e sofisticada, atores refinados e carismáticos, roteiros criativos e bem-humorados. Cada episódio e cena parecem ser tratados com esmero digno de Francis Ford Copolla, talvez o melhor marceneiro da história do cinema.
Também a originalidade da trama poderia ser uma boa explicação para o fenômeno. Ao contrário de algumas séries médicas mais antigas, o enredo não se desenvolve em paralelo ao drama de saúde e à luta por sua cura. O próprio processo de diagnóstico e tratamento se constitui no nervo exposto de House, abordado como suspense típico de romances policiais e inspirado no Sherlock Holmes de Conan Doyle.
Mas não são apenas razões estéticas que dão vigor ao programa. O personagem central, um anti-herói sarcástico e insensível, provoca os espectadores a reagirem sobre a tensão entre ciência e moral. Gregory House fere quase todo o tempo as normas da ética médica, atropelando o que estiver na sua frente para identificar corretamente a doença e eliminá-la como a um inimigo no campo de batalha.
Suas atitudes são uma constante violação de conduta com pacientes e familiares, colegas e superiores. Submete tudo e a todos ao objetivo de sua profissão, mesmo que o preço a pagar seja o desrespeito a quem o cerca e aos portadores do mal que obstinadamente se dedica a abater. Simplesmente porque não pode haver obstáculo moral à ação científica.
House não atua dessa forma por carreirismo ou vantagens materiais, apenas por compromisso com sua causa. Médico consagrado, vive e trabalha como um estóico. Dirige carros velhos ou motocicletas. Mora em apartamentos simples e antigos. Não ostenta riqueza, somente excentricidades. Tampouco admite complacências que contrariem seus princípios, que aos demais se apresenta como estranho código amoral.
Eventualmente porque o personagem encarne o axioma maquiavélico sobre os fins justificarem os meios. Seu olhar sobre regras é utilitário. Como se fossem um pacto de convivência que, muitas vezes, bloqueia ou atrapalha a guerra contra enfermidades. Quando é conveniente para sua ação, as respeita. Mas não teme ultrajá-las sem piedade nos momentos que se colocam como empecilhos.
Comparado a outros heróis de novelas médicas - geralmente bonitos, generosos e amistosos -, o doutor House é refém da misantropia. Ainda que trabalhe em equipe, quase sempre rejeita aproximações pessoais. Seus vínculos são com ideias e resultados, que se sobrepõem a sentimentos e afetividades.
A parábola com a política parece inevitável. Gregory House subordina ética à ciência da mesma forma que a esquerda, por exemplo, é acusada pelos liberais de submeter moral à ideologia. A narrativa da série, pelos passos do protagonista, de fato referenda como hipótese a natureza essencialmente conservadora da moralidade, ainda que seja um indispensável marco civilizatório.
Valores perenes e universais, forjados no passado, estabeleceriam um freio ao desenvolvimento se transformados em ditadura sobre a ação humana e científica. House, que esculacha com esse pressuposto em sua atividade profissional, oferece uma alternativa, às vezes esboçada no final de cada episódio. A moral deve estar subjugada aos objetivos científicos, mas não é o mesmo que descartá-la. Trata-se de reconstruí-la, a cada momento, conforme os interesses concretos da humanidade e seus microcosmos.
E por aqui ficamos. Afinal de contas, House não é uma mesa-redonda sobre filosofia. Basta ser o que é: entretenimento inteligente, de alta qualidade, que faz pensar. Um raio no monótono céu azul do multiculturalismo e do politicamente correto, cujo cardápio de boas maneiras frequentemente anestesia o debate de questões fundamentais.
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