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Contra a palmada

O maior mérito de se discutir a aprovação ou não de uma lei que criminize os pais que batem nos fllhos é justamente o fato de se conversar sobre esse tema. Acho um pouco exagerado transformar isso em lei, embora vale a pena lembrar um detalhe: quem bate em idosos é punido pela legislação. Por que a violência contra crianças não pode ter tratamento semelhante?

Como não sou especialista nisso, reproduzo abaixo dois textos com os quais concordo vírgula por vírgula. O primeiro é da neurocientista Suzana Herculano; o segundo é da psicóloga Rosely Sayão.

Não existe palmada bem dada

Claro que o objetivo não é colocar na prisão aqueles pais que, incapazes de resolver desavenças com seus filhos na base da conversa, recorrem à punição física na forma de "uma palmada bem dada", no afã de impor alguma sombra de autoridade.

O estatuto que proíbe a punição corporal de crianças visa a que se deixe de considerar normal, necessário ou saudável "educar" com violência. Como a sociedade que pune com prisão quem bate em velhinhos aceita que pais batam em suas crianças?

O problema tem vários níveis, e só um deles (ainda que de grandes consequências para as gerações futuras) é o seguinte: violência, não importa em qual forma, gera violência, como a neurociência já constatou várias vezes.

Funciona igualmente com camundongos e com humanos: o cérebro que recebe maus tratos na infância sofre várias mudanças, incluindo alterações em seu sistema de recompensa, que antecipa bons resultados; na amígdala, que sinaliza maus resultados; e no hipocampo, que forma memórias novas e cuida de nossa lista mental de "problemas a resolver".

O resultado? Crianças que recebem restrição corporal, palmadas, sacudidas ou abuso verbal (castigos que muitos consideram brandos) se tornam adultos com propensão a comportamento antissocial e agressivo, transtornos de ansiedade, depressão, alcoolismo e outras formas de dependência química.

"Mas eu recebi palmadas na infância e me tornei um adulto saudável, portanto, palmadas não fazem mal", dizem vários defensores das palmadas educativas.

Pelo contrário: graças à resiliência do cérebro (sua capacidade de se recuperar de agressões variadas), ao que tudo indica essas pessoas que sofreram maus tratos na infância provavelmente se tornaram adultos saudáveis APESAR das palmadas.

E, justamente por causa da capacidade do cérebro de se adaptar, essas crianças punidas com violência viraram adultos que hoje acham normal... punir com violência.

Felizmente existe antídoto, tão ao alcance quanto uma palmada. Também funciona com camundongos e crianças, também é comprovado pela neurociência, também muda o cérebro para o resto da vida e se autopropaga.

Chama-se carinho e, no caso dos humanos, se vier acompanhado de apoio moral, bons exemplos, compreensão e conversa, melhor ainda.

Tapinha dói

Muitas mães pensam que um tapinha dado no filho, com amor e boa intenção, não dói. Dói sim, e como dói! E não apenas no corpo. Claro, este padece nessa hora, mas a criança fica principalmente magoada com aquele adulto de quem espera proteção, amor e cuidado, e não agressão. Resultado: o vínculo de confiança que deveria haver entre eles pode ser afetado, prejudicado.

Por que ainda se bate em criança? Há quem acredite que o ironicamente chamado "tapa pedagógico" tenha efeito educativo. Não tem, e isso pode ser constatado no próprio convívio com crianças que levam castigos físicos quando cometem alguma transgressão. Crianças de todas as classes sociais, desde bem pequenas, apanham porque não conseguem ainda se controlar e fazem o que os adultos esperam que já saibam que não poderiam ou deveriam fazer. Mas voltam a cometer a mesma falta. E apanham novamente.

Precisariam de mais castigo, ou de castigos mais severos? Elas precisam é de adultos que as ajudem e as socorram quando se entregam a seus impulsos e caprichos, isso sim. Acontece que, hoje, os adultos estão tão ocupados consigo mesmos que têm dificuldade em ter esse trabalho com as crianças: esperam que elas acatem as regras de primeira. Esquecemos o que é ser criança.

Sempre é bom lembrar que educar uma criança é socializá-la, ou seja, introduzi-la no mundo do convívio civilizado. Bater em uma criança para ensinar a ela que é preciso saber esperar, mostrar respeito ao outro, relacionar-se com boas maneiras e aceitar alguns impedimentos na vida não faz o menor sentido, portanto. É contraditório.

Sabemos muito bem que alguns pais batem em seus filhos simplesmente porque se descontrolam, porque perdem ou percebem que não têm a autoridade moral sobre a criança para educá-la. Mas aí o problema é só do adulto. A criança, o elo mais fraco dessa relação, não deveria ser o alvo desse descontrole.

Isso posto, não há como defender o uso de castigos físicos em nome de uma boa educação. É possível, quando necessário, aplicar sanções à criança ou ao jovem que não são humilhantes ou violentas, tanto sob o aspecto físico quanto moral.

Hoje, a sociedade brasileira discute um projeto de lei contra castigos físicos aplicados em crianças ou adolescentes. Dá para entender o espírito dessa lei, tanto quanto o do Estatuto da Criança e do Adolescente: proteger as gerações mais novas.

A parte difícil nessa história é reconhecer que vivemos num mundo e num país em que precisamos de leis para que os adultos cuidem bem das crianças e dos adolescentes, não é verdade? Tanto que o próprio estatuto já é execrado por muita gente, inclusive e principalmente por pessoas que trabalham com crianças.

É verdade que a infância e a adolescência vivem, na atualidade, envoltas em práticas violentas. Sofrem violência e a praticam também. Por isso, temos um importante compromisso com os mais novos. Mas não temos levado muito a sério essa responsabilidade já que, cada vez mais, procuramos e aceitamos a intervenção do Estado para legislar a vida privada.

Cuidar bem de nossas crianças significa educá-las com autoridade firme e doçura, amar a vida, ter apreço pela liberdade e defender a autonomia. Mas isso tem um custo, é claro, com o qual parece que não queremos arcar.

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