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Fugindo do óbvio

Reportagem do Cosme Rímoli sobre o jogo entre Tanzânia 1 x 5 Brasil.

Muitos palavrões, raiva de Kaká e união extrema do time marcam a goleada do Brasil sobre a Tanzânia

Que Felipe Melo e Lúcio gritam palavrões durante todo o jogo, não é preciso ser um gênio para adivinhar, mas seria impossível supor o bom moço Kaká e o franzino Robinho encarando, provocando e ameaçando jogadores da Tanzânia. Era ver para crer.

Eu estava lá para observar o time brasileiro, mas antes mesmo de o jogo começar, vale a pena relatar o desespero de um DJ. Ele estava controlando a insuportável seleção de reggaes que deveria servir para animar a torcida no estádio, mas o volume era tão ensurdecedor que o preparador físico da seleção, Fábio Mahseredjian, foi atrás do gol para pedir que abaixasse. Estava impedindo os jogadores de ouvir os comandos dele e do outro preparador, Paulo Paixão. Fabio foi desprezado pelo DJ, e o reggae continuou a massacrar os tímpanos de quem estava no gramado, já que gigantescas caixas de som foram colocadas na pista de atletismo.

Mas a raiva de Fábio trouxe má sorte ao DJ. Era ele também quem controlava os Hinos nacionais que foram tocados antes da partida. No do Brasil, nenhum problema. No da Tanzânia, o constrangimento. O CD devia estar desgastado, riscado, e ficou repetindo o refrão por várias vezes. A torcida ficou irritada. Os jogadores locais, possessos. O Hino recomeçou do início. A bronca que o DJ tomou de um general do Exército da Tanzânia foi absurda. Ele esteve a ponto de dar um soco, mas depois se acalmou. Praga do preparador físico brasileiro.

Começa a partida. Nos primeiros 25 minutos, pressão pelo lado esquerdo da defesa brasileira, nas costas de Michel Bastos. Juan chegou a tomar uma bola no meio das pernas ao tentar cobrir o lateral. Lúcio ficou possesso e passou a desabafar, xingando todos com os palavrões possíveis e imagináveis. Xingou e olhou para cima, para não desmoralizar Michel. Nem as vuvuzelas, praga em toda a África, impediam de ouvir os palavrões em bom português. Lúcio fez gestos irritados ao bandeira, mas depois, sutilmente, olhou para o lateral. O capitão manda.

- Presta atenção, p...

Juan foi mais sutil, mais suave. Chegou perto e falou ao ouvido de Bastos. Lúcio é a explosão e Juan, a razão. Michel Bastos tratou de defender mais o seu setor. O problema foi resolvido.

A dupla de zaga brasileira está muito entrosada, não conversa, mas se entende pelo olhar e gestos. É muito interessante, reação típica de quem se conhece há anos. Lúcio e Juan sabem que formam uma das melhores duplas de zagueiros do mundo, porque se completam.

Já Felipe Melo merece um câmera o acompanhando em todas as partidas. Ele provoca, encara, xinga os adversários, principalmente os que estão se destacando no ataque adversário. Foi assim com os jogadores de Tanzânia. Mal conseguiam um drible, uma tabela ou chute a gol, bastava a bola ficar do outro lado do campo e ele se aproximava, ficava olhando com cara de briga e soltando vários palavrões em português. E a tática funciona. Alguns adversários, assustados, saíram de perto dele e passaram a tocar a bola ao chegar no volante. O que resolveu encará-lo, depois de uma dividida, voou, foi se queixar com o árbitro e passou a jogar longe de Felipe.

Seu companheiro de intermediária é um “gentleman”. Gilberto Silva segue a escola de Juan e prefere falar ao pé do ouvido, até mesmo com o adversário. Experiente, com duas Copas nas costas, não quer chamar a atenção. E o mais importante: é respeitado. Os que escutam suas orientações ou cobranças têm a mesma reação: afastam-se, balançando a cabeça afirmativamente.

A maior preocupação de Dunga era Kaká. Durante todo o jogo o treinador ficou olhando e fazendo sinais de incentivo ao meia. Gritava “Vai, vai, vai”, como um pai acompanhando o treinamento de um filho adolescente. No gol de peito, o técnico vibrou como uma avó ao saber que seu neto passou no vestibular. As orientações e gestos de incentivo duraram até o final do jogo.

Ao lado do gramado, deu para perceber a tristeza de Julio Baptista. Ele treinou muito e esperava entrar contra a Tanzânia, mas Dunga o havia avisado que só jogaria se Kaká não suportasse o ritmo, pedisse para sair. Resultado: o meia reserva assistiu ao jogo com as mãos no queixo, desapontado. Dunga nem o mandou aquecer, e o jogador ficou sentado no banco, vendo Kaká.

Por falar nele, o meia do Real Madrid se mostrou influenciado pelos recentes cortes de jogadores importantes da Copa. Bastava qualquer adversário dividir com força a bola com ele e o bom moço desaparecia. Encarou, provocou, ameaçou a todos que ousaram fazer falta nele, sujar seu uniforme. Empurrou, não aceitou pedidos de desculpas e pediu cuidado com as entradas aos jogadores da Tanzânia, principalmente os pontapés por trás. Ele até revidou algumas faltas. Robinho, Luís Fabiano, Elano e Felipe Melo eram seus guarda-costas. Se ele discutia com alguém, quando a bola estava longe, um deles logo se aproximava do jogador e o encarava.

É muito interessante perceber quantas coisas acontecem quando as câmeras estão seguindo a bola. Robinho rouba a cena. Ele é folgado, desafia o adversário e o encara até que fale alguma coisa, e aí xinga. E só quem é xingado ouve. Na próxima bola que recebe, procura o rival para o drible. É assim que busca falta, cartão amarelo, vermelho. Não há santo no futebol.

Por duas vezes, ficou evidente o quanto Luís Fabiano quer mudar a sua imagem. Ele discutiu com marcadores, xingou, ofendeu as mães dos zagueiros. Quando o clima parecia que ia esquentar, ele virava as costas. Parecia lembrar que estava com a camisa da seleção e não da Ponte Preta, quando as suas expulsões eram perdoadas. Mas Luís Fabiano se cobrava, não se perdoava quando chutava mal a bola. Sua raiva era evidente por não conseguir marcar. Ele já soma três coletivos e dois jogos em branco. Quando o jogo acabou, ele não quis olhar para ninguém.

Em compensação, Ramires falava e sorria sozinho de tanta felicidade. A bola estava do outro lado do campo e ele correndo sorrindo, sabe que vai ser útil de verdade na Copa do Mundo. Foi emocionante.

Além dos palavrões novos, algo fica marcado para quem acompanha ao lado do gramado a seleção de Dunga jogar para valer. Ela passa os 90 minutos atuando com raiva. Em cada lance fica nítido esse sentimento. Os jogadores compraram para valer a ideia de que são eles contra todos. Essa filosofia trouxe união. Os atletas se apoiam, cobram-se mutuamente e não admitem qualquer desrespeito por parte do adversário, além de protegerem Kaká, com a devoção de irmãos mais velhos para com o caçula, o mais talentoso da família.

Para o bem ou para o mal, o Brasil de Dunga está pronto. Que venha a Copa do Mundo.

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