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Para o DEM, negros foram os culpados pela escravisão

A principal discussão política da semana (e talvez do ano, até agora) está ocorrendo em Brasília, especificamente a respeito da implantação ou não de cotas raciais nas faculdades brasileiras. O Democratas (ex-PFL, ex-PDS, ex-Arena, nunca custa lembrar) considera que as cotas raciais são inconstitucionais porque, ao reservar vagas para negros e afrodescendentes, contrariariam o princípio da igualdade dos candidatos no vestibular.

Até aí, cada grupo político com seu direito de concordar ou discordar do que bem entender. O que não dá pra ouvir quieto é a visão de um dos senadores do partido sobre a escravidão no Brasil.

Quem ouviu discurso de Demostenes Torres saiu com a impressão de que os africanos eram os principais responsáveis pelo tráfico transatlântico de escravos. Que escravas negras não foram violentadas pelos patrões brancos, afinal de contas “isso se deu de forma muito mais consensual” e “levou o Brasil a ter hoje essa magnífica configuração social” de hoje. Que no dia seguinte à sua libertação, os escravos “eram cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de elegibilidade” – mesmo sem nenhuma política de inserção aplicada. Com isso, o nobre senador deu a entender que os negros foram os reais culpados pela escravidão no Brasil. As frases foram registradas pelos jornalistas Laura Capriglione e Lucas Ferraz, da Folha de S. Paulo.

Separo abaixo dois comentários do jornalista Leonardo Sakamoto:

"A posição do senador é compreensível, se considerarmos que o discurso feito não foi um ataque à reserva de vagas para negros e afrodescendentes e sim uma defesa da elite política e econômica que controlou a escravidão no país e que, com algumas mudanças e adaptações, desembocou em setores do seu próprio partido."

"Depois me perguntam por que a proposta que confisca terras de quem usou trabalho escravo está engavetada no Congresso Nacional…"

Felizmente a Folha também ouviu uma autoridade no assunto, o professor Luiz Felipe de Alencastro, autoridade suprema no assunto e responsável pela disciplina de História do Brasil na Universidade de Paris - Sorbonne. Fica abaixo sua análise:

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor titular de história do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne, diz ser falsa a visão da mestiçagem como uma grande festa de relações consensuais. "Se fosse assim, por que a mestiçagem retrata invariavelmente uma situação em que o homem genitor (mas não marido) é da camada dominante e a mulher é sempre da camada dominada (mulata ou negra)? Por que não existem casos de mulheres brancas casando-se com negros no século 19?"

Alencastro refuta a noção de que foram os próprios negros que organizaram o tráfico negreiro: "Havia, sim, tráfico de escravos na África. Mas a escravidão atlântica teve uma intensidade tal, uma integração tamanha com o capitalismo moderno, que acabou exacerbando os mecanismos de exploração interna no continente africano."

O historiador diz que há registros de 37 mil viagens de navios negreiros para as Américas. "Nenhuma delas em navios de propriedade de negros. Toda a logística e o mercado eram uma operação dos ocidentais."

Segundo Alencastro, o Brasil teve uma posição "excepcional" no tráfico negreiro atlântico. "Os colonos do Brasil foram os únicos que fizeram expedição negreira na África. Os americanos não tinham essa logística, os cubanos também não. Mas os brasileiros invadiram Angola em 1648 para relançar o tráfico negreiro."

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