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De volta em alto nível

A idéia era ressucitar o blog com um texto a ser publicado amanhã, mas a leitura atrasada de uma entrevista publicada na Folha de ontem (24/3) com Gay Talese me fez mudar de idéia.

A conversa com o repórter Daniel Bergamasco teve como principal tema o moralismo norte-americano em relação ao sexo e suas conseqüências na política do país. Talese tem autoridade de sobra para falar sobre o tema. Seu livro "A mulher do próximo" é uma obra-prima do gênero, e merece um texto neste blog assim que sobrar um tempinho.

Veja abaixo a entrevista:

Nos EUA, os piores presidentes não tiveram amantes

Gay Talese está resfriado. Telefona para o repórter da Folha, atendendo ao pedido deixado na secretária eletrônica, e avisa, raspando a garganta: "Me resfriei e vou viajar, não posso receber você em casa. Mas posso falar agora sobre o Spitzer, tenho poucos minutos", diz o escritor de 76 anos, um dos pais do jornalismo literário, autor de reportagens antológicas reunidas nas coletâneas "Aos Olhos da Multidão" e "Fama e Anonimato" e de obras como "O Reino e o Poder", sobre o "The New York Times", onde atuou como repórter.

Talese diz que a sociedade americana não está mais ou menos moralista desde que ele publicou em 1980 "A Mulher do Próximo", livro-reportagem que retrata a transformação sexual e moral dos Estados Unidos entre as décadas de 1960 e 1970. Contudo, diz, a mídia repete tanto as informações sobre escândalos sexuais que faz que as pessoas se importem com eles, como no caso do ex-governador de Nova York Eliot Spitzer, que, casado, renunciou no último dia 12 após confirmar que era cliente fiel de uma rede prostituição. Nesse caso, afirma Talese, o escândalo foi bem-vindo. "Não é que ele esteja vivendo uma vida tão diferente de muitas outras pessoas, tendo uma prostituta, uma amante. Mas a diferença é que ele preconizava uma posição de moralidade, ele quis fechar bordéis, e aí aparece que ele era cliente de bordéis. É bom que ele seja exposto", diz o escritor.

O que mudou no moralismo americano entre "A Mulher do Próximo" e o escândalo sexual do governador Eliot Spitzer?
O moralismo não mudou. A mídia mudou.

De que forma?
Quando escrevi "A Mulher do Próximo", a mídia não discutia tanto infidelidade, não transformava a vida privada das pessoas em colunas de notícias. John Kennedy foi presidente dos Estados Unidos e teve muitos casos, mas ninguém escrevia sobre sua vida sexual. Havia rumores, mas isso nunca foi conhecido, como foi com Bill Clinton, ou agora, com o governador de Nova York, ou com o senador [Larry] Craig, o homossexual [que renunciou após assediar um homem em banheiro de aeroporto, em 2007]. Na França, quando François Mitterrand foi presidente, não havia discussão sobre seu filho ilegítimo. Mas a mídia americana publica hoje sobre qualquer coisa.

Os eleitores levam em conta o comportamento sexual do candidato?
Não acho que faz diferença nenhuma desde que não se relacione com seu trabalho. John Kennedy foi um presidente muito bom e tinha amantes. Bob Kennedy, seu irmão, tinha amantes. Eram casados e tinham amantes. Lyndon Johnson tinha amantes. Eisenhower. Todos nossos bons presidentes tinham amantes. O presidente Richard Nixon não tinha amantes e foi um presidente ruim. Esse cara, George W. Bush, é um presidente ruim. E não tem amantes. Entende? Bill Clinton foi muito bom e teve. Os piores presidentes são os que não tiveram amantes. Nixon foi o pior de todos os tempos. E Bush é o segundo pior. Se Bush tivesse amantes, talvez não estaria matando tanta gente no Iraque e tendo essa politica de destruir a vida de tanta gente.

O senhor quer dizer que, se a vida sexual de Bush fosse menos comportada, seu governo seria melhor?
Não digo que seria melhor, mas quando você olha... Os bons presidentes não eram pessoas que se "comportavam" sexualmente. Martin Luther King tinha muitas amantes. Matin Luther King! Nós temos um feriado para ele, ele é um herói nacional. E tinha muitas amantes. Muitas. Ele era um cara mau? Não, não era.

O desrespeito da privacidade dos políticos é sempre ruim?
Depende. Não é bom ou ruim. O que você quer dizer com bom ou ruim? Spitzer é um hipócrita, e é bom que ele seja exposto como hipócrita. Não é que ele esteja vivendo uma vida tão diferente de muitas outras pessoas, tendo uma prostituta, uma amante. Mas a diferença é que ele preconizava uma posição de moralidade, ele quis fechar bordéis, e aí aparece que ele era cliente de bordéis. É bom que ele seja exposto. O outro cara que o substituiu [David Paterson] diz que não tem um casamento perfeito. Mas quem tem? Pelo menos ele trouxe um pouco de verdade para o governo. Spitzer é um hipócrita.

Como repórter, hoje em dia, você publicaria matérias sobre esse escândalo?
Não vou dizer que não publicaria, porque, se alguém mais publicar, você tem que publicar. Você não pode fingir que não viu, porque todo mundo sabe sobre isso, está na televisão, nos websites. Se você está no negócio de publicar jornais, tem que publicar o que é considerado notícia. É que hoje em dia tudo é notícia, o que não acontecia 30 anos atrás. É bom ou ruim? Eu não sei. O que acontece é que pelo menos força as pessoas a viverem em coerência com o que dizem.

O sr. avalia mesmo que nada mudou moralmente na sociedade? "A Mulher do Próximo" mostra, por exemplo, a revista "Playboy" como algo chocante e depois mais respeitada, mas hoje em dia a revista é uma instituição americana.
Eu mostrava como aquilo mudou naquela época. Nós tivemos mudança real nos anos 1960 e 1970, quando escrevi aquele livro. Pouca coisa mudou desde então. Exceto que a mídia fala mais sobre sexo agora porque há mais liberdade para isso. Mas você não vê pessoas tendo relação sexual com penetração na TV, não ouve certas palavras na TV. Há restrição sobre o que você pode dizer, o que você pode ver. Você não pode ver homem nu na TV mostrando o pênis, não pode. No Brasil também não pode, tenho certeza.

Mas, se a mídia muda, a percepção da sociedade não muda juntamente com ela?
Eu acho que a mídia mantém a história viva. Quando Bill Clinton teve uma pequena vida sexual com Monica Lewinsky, isso não tinha nada a ver com o trabalho dele como presidente. Não ocupou muito tempo dele. Mas a mídia fez uma história enorme, e aí as pessoas começam a se importar. Lembra que o papa João Paulo 2º estava visitando [Fidel] Castro naquela época? Ele estava indo para Havana e toda a mídia estava lá para cobrir o papa. Quando houve o rumor de que o presidente Clinton teve esse pequeno caso sexual no Salão Oval, todo mundo deixou Havana. Toda a mídia foi embora. E o papa não tinha com quem falar. Não havia cobertura de Castro encontrando o papa. A mentalidade da mídia está toda voltada para escândalos sexuais. A mídia conduz a história.

Por quê?
Sexo não é complicado. Política é complicado. Na campanha, veja, as pessoas não ligam para propostas. Elas gostam de histórias simples, escandalosas, com o mais baixo, o menor denominador comum. E a mídia provê isso. A mídia é que conduz a história.

Mas por que o governador renunciou, se as pessoas não se importam tanto assim?
A mídia faz as pessoas se importarem, porque repete, repete, repete e repete a história. Fica batendo até a morte. A mídia quer manter a história. Acho que é bom que Spitizer tenha sido exposto como hipócrita, porque é. Já Bush não é um hipócrita sexual, mas é hipócrita em várias outras formas.

Em que formas?
Ele diz que estamos tentando levar democracia para o mundo. E não estamos. Estamos invadindo o mundo, forçando eles [outros países] a se ajustarem a nossa política. A administração de Bush critica os chineses em direitos humanos, e nós invadimos os países de outras pessoas e levamos atrocidades para esses países. Não estamos em uma posição em que podemos dizer que somos melhores que os outros. Somos piores, de certo modo.

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